Marcos Bagno é linguista brasileiro e professor da Universidade de Brasília. Escritor, tradutor e sociolinguista especializado nos estudos sobre norma linguística e sobre educação linguística, com publicações muito influentes em torno do conflito linguístico no Brasil, dentre as quais se destaca o livro Preconceito linguístico, publicado originariamente em Edições Loyola, 1999, onde teve mais de 50 edições, e republicado, numa versão atualizada e ampliada, pela Parábola Editorial em 2015. Dentre a sua enorme obra, que o torna uma referência no debate glotopolítico brasileiro, se destaca a Gramática pedagógica do português brasileiro, editado pela Parábola em 2011, e o seu Dicionário crítico de sociolinguística, publicado também pela Parábola, em 2017.
Os anos de formação política e linguística
XOÁN LAGARES: Marcos, eu queria começar com uma pergunta sobre as origens. A sua figura pública no Brasil representa uma confluência que não é muito comum na nossa área, entre uma visão científica da linguagem e o compromisso social explícito e claro com políticas de igualdade. Eu queria que você falasse um pouco sobre a sua formação. Como se forma em você essa consciência política, esse interesse pela linguagem e, enfim, qual é a confluência de fatores que dá origem ao Marcos Bagno que conhecemos?
MARCOS BAGNO: Eu costumo dizer que tenho na família a grande origem desses meus posicionamentos políticos e intelectuais, porque sou filho de um pai comunista. Meu pai foi militante do Partido Comunista Brasileiro. Quando houve o golpe que instaurou a ditadura militar em 1964, ele foi objeto de inquérito, teve que responder a processo. O partido chegou mesmo a pensar na hipótese de nós nos exilarmos, mas a família já era grande naquela época, então ele acabou respondendo a esse processo e conseguiu ser inocentado, graças principalmente ao trabalho de um advogado que foi um grande defensor dos direitos humanos, que é o Modesto da Silveira. Então, eu tive essa formação em casa. Uma preocupação muito grande desde sempre com a problemática social, com aquilo que tinha a ver com as relações de poder, com as injustiças sociais. Meu pai é sociólogo de formação, então nós tínhamos em casa uma ampla biblioteca de política, de história, de sociologia, e eu desde cedo comecei a me interessar por essas coisas e também por influência do meu pai. Aprendi a ler e a escrever praticamente sozinho. No momento em que aprendi a ler, me dediquei intensamente à leitura e à escrita. Já adolescente, eu já tinha lido o Manifesto comunista, a Ideologia alemã, a Origem da família, da propriedade privada e do Estado, do Engels, além de muita literatura. Então, esse ambiente familiar é que foi moldando em mim a minha ideologia política. E digo isso hoje com todas as sílabas, com todas as letras, porque se assumir como comunista ou como de origem comunista hoje pode parecer muito anacrônico, especialmente no Brasil, no momento em que nós estamos nas mãos de um desgoverno de clara matriz fascista. Então eu gosto de dizer isso: venho de uma família de comunistas, e isso foi o que moldou a minha perspectiva política, ideológica e a mirada social que sempre tento lançar sobre tudo que diz respeito à vida, à sociedade, à cultura e, claro, à língua também. Eu comecei a estudar francês muito pequeno. E estudei francês durante muitos anos, fui professor de francês, fui tradutor simultâneo de francês, e as outras línguas eu fui estudando e aprendendo basicamente sozinho. Estudei espanhol, italiano, inglês, me aventurei pelo latim, conheço um pouco da estrutura do grego, o grego clássico, claro, tenho uma familiaridade com o alemão, o catalão veio de brinde, né, porque quando a gente conhece as outras línguas românicas, o catalão se torna um presente, graças à intercompreensão possível entre as diferentes línguas românicas. Então, as línguas sempre me interessaram muito. Eu sempre tive essa grande paixão pelas línguas, essa grande curiosidade, essa vontade de saber como se diz uma coisa na outra língua, fazer as comparações etc. Eu digo que sou mais ou menos como um filólogo do século 19. Tenho aquele interesse pelas línguas, pelas famílias linguísticas. Quando descubro uma raiz indo-europeia, já começo a ficar excitado querendo saber como foi que ela se reproduziu, o que que ela deu nas diferentes línguas. Então, eu tenho esse perfil bastante de filólogo do século 19. Costumo brincar dizendo isso, até mesmo um pouco de monge, de ficar dezoito horas trancado no gabinete lendo, estudando, pesquisando. Minha formação acadêmica começa na Universidade de Brasília, onde eu atuo hoje em dia. Eu iniciei ali o meu curso e, na Universidade de Brasília, fui apresentado à sociolinguística. Eu fui aluno, logo no início do meu curso, da professora Stella Maris Bortoni-Ricardo. A professora Bortoni-Ricardo tinha acabado de voltar da Inglaterra, onde tinha defendido a sua tese de doutoramento. Stella aplicou o modelo das redes sociais desenvolvido pelos Milroy na Inglaterra, ela aplicou ao contexto aqui do Distrito Federal, no Brasil, para falar sobre as famílias de imigrantes. Esse trabalho da Stella se tornou uma referência, até hoje ele é muito citado, por conta dessa aplicação do modelo das redes sociais. Stella traz uma sociolinguística que é de outra vertente, porque no Brasil nós já tínhamos um grupo muito importante de sociolinguistas no Rio de Janeiro, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, mas que trabalhavam e trabalham ainda, são essencialmente mulheres, que trabalham no paradigma laboviano, a sociolinguística quantitativa, variacionista. Stella vem da Inglaterra e traz uma perspectiva muito mais interacional. Então, eu tive esse primeiro contato com a sociolinguística nessa vertente, e pra mim foi uma grande alegria, ainda jovem, descobrir que eu não precisava inventar uma disciplina que reunisse o meu interesse pelos aspectos sociológicos e sociais e o meu grande interesse, minha grande paixão pelas línguas. A relação entre linguagem e sociedade já era muito estudada, já havia disciplinas que se dedicavam a isso, então esse contato com a sociolinguística por meio da Stella Bortoni foi muito importante pra mim. Na metade do meu curso, eu me transferi para a cidade do Recife e fui completar a minha graduação na Universidade Federal de Pernambuco. Nesta universidade, tive como professor um dos grandes linguistas brasileiros, Luiz Antônio Marcuschi, infelizmente falecido muito cedo. E com Marcuschi eu tive acesso a todo um espectro de áreas de conhecimento, de áreas de investigação da linguística. Marcuschi foi pioneiro no Brasil, entre outras coisas, na Linguística Textual, na Análise da Conversação, na relação entre língua falada e língua escrita. Ele me apresentou a Pragmática linguística e, principalmente, ele me introduziu na filosofia da linguagem. Ele é filósofo de formação, foi a primeira vez que eu ouvi falar de Wittgenstein, e aí, por causa do Marcuschi, fui ler Wittgenstein, por causa do Wittgenstein fui ler Santo Agostinho. Essa influência do Marcuschi foi muito grande também na minha formação, porque ele também sempre tinha essa preocupação de mostrar e ver os fatos de linguagem pelo prisma social. Então, essa foi a minha formação. Com uma origem familiar essencialmente de esquerda, comunista mesmo, militante do Partido Comunista, que era o meu pai. Em seguida, a entrada na Universidade de Brasília e o contato com a sociolinguística e, mais adiante, em Pernambuco, o contato com a filosofia da linguagem, por meio do professor Marcuschi.
A reflexão teórica sobre a norma gramatical
XL: De fato, na Federal de Pernambuco, você defendeu o seu mestrado com o trabalho que se chama A luta desigual: mito e realidade nos livros didáticos de língua portuguesa, onde já, enfim, aponta um dos focos do seu interesse, que é pela realidade da língua portuguesa falada no Brasil e como isso aparece no sistema educacional, nesse caso, nos livros didáticos. E depois você defende a sua tese de doutorado em São Paulo, e aí muda o foco para o papel da mídia no debate do conflito normativo brasileiro. A sua tese será publicada depois com o título Dramática da língua portuguesa: variação gramatical, mídia e exclusão social. Pode falar um pouco, enfim, desses dois interesses, como começa esse interesse pela questão midiática, da língua na mídia?
MB: Pois, então, as coisas foram se encaminhando. Em 1997 eu publiquei o meu primeiro livro dentro do campo da linguística, que se chama A língua de Eulália, que foi escrito na forma de uma novela, o subtítulo é novela sociolinguística. Ali eu trato de alguns traços característicos das variedades populares do português brasileiro, mas numa narrativa romanceada, com personagens etc. Por causa deste livro, eu recebi alguns convites pra fazer algumas palestras. E nessas palestras, eu me concentrava nos aspectos de preconceito, de estigma social lançado contra as pessoas que usavam essas características peculiares, essas características próprias das variedades ditas populares ou rurais do Brasil. Então, de repente, o meu querido amigo Marcos Marcionilo, que é o editor da Parábola (na época ainda estava nas Edições Loyola), me sugeriu que essas coisas que eu estava dizendo nas palestras, que eu as transformasse num pequeno livro. E foi aí que surgiu o livro Preconceito linguístico, publicado em 1999. Nesse período, já, enquanto escrevia esse livro e publicava o Preconceito linguístico, já estava fazendo o meu doutorado na Universidade de São Paulo, sob a orientação do professor Ataliba de Castilho. Na escrita do Preconceito linguístico, eu me concentrei muito na mídia. Criei um termo bastante irônico, que é o de comandos paragramaticais, que é como eu chamava essas pessoas que iam para os jornais, pras rádios, televisão pra falar sobre a língua certa, como as pessoas estão falando mal, a decadência do português no Brasil etc. No meu enfoque, eu peguei essas manifestações da mídia para discutir o preconceito linguístico que estava bem enraizado no discurso dessas pessoas. Também eu já estava pensando muito nessa relação entre mídia, preconceito linguístico, a difusão de uma ideologia linguística anacrônica, conservadora e fazendo a tese ao mesmo tempo. Então, as coisas aconteceram ao mesmo tempo. Eu publiquei esse livro enquanto ainda estava no doutorado. E durante o trabalho pro doutorado, claro, me dediquei à investigação sobre a norma, a norma linguística. Isso tem a ver com diversas leituras que a gente vai fazendo durante a pesquisa da tese, e fui entrando em contato com vários textos de autores brasileiros que tinham se preocupado com a questão normativa, em diferentes publicações, em revistas acadêmicas, em livros. Assim, na década de 1990, diversos autores e autoras aqui no Brasil se interessaram pela questão normativa. Eu posso citar em primeiríssimo lugar a professora Magda Soares, que já no final dos anos 1980, muito preocupada com a educação, com o ensino de língua na escola, tinha falado muito sobre isso. Depois, nós temos textos da professora Rosa Virgínia Mattos e Silva, do Dante Lucchesi, do Carlos Alberto Faraco, do Ataliba de Castilho, meu orientador de doutorado, e várias outras pessoas que estavam se debruçando sobre esse tema naquele momento. Também uma base muito importante para a minha tese foi Pierre Bourdieu, com o seu texto clássico A economia das trocas linguísticas. Eu percebi que a norma, a questão normativa era um núcleo em torno do qual era possível fazer orbitar uma grande quantidade de temas glotopolíticos próprios à realidade brasileira: a desigualdade social, o autoritarismo político, a educação de modo mais geral e a educação linguística em particular, a opressão de gênero, o racismo, a homofobia, o ódio de classe, tudo isso podia ser observado, analisado, estudado pelo prisma da norma, da norma linguística. E eu sempre tentava fazer a comparação entre as normas sociais, as normas de comportamento social e as normas linguísticas. Então, este vínculo entre linguagem e sociedade, entre normas linguísticas e normas sociais, foi o núcleo da minha tese. E, desde então, como você sabe, eu nunca mais abandonei o tema da norma, está sempre voltando nos meus escritos e nas minhas pesquisas.
XL: De fato, depois que você publicou, em 2000, Dramática da língua portuguesa, sobre a sua tese, depois você publicou uma série de obras coletivas, organizou obras como Norma linguística, em 2001, que são artigos traduzidos por você. Queria que explicasse um pouquinho como chegou à composição desse livro. E depois Linguística da norma, que é já com autores brasileiros, aqueles que você citou e alguns outros, pensando sobre a norma no Brasil. Em 2003, publica A norma oculta: língua e poder na sociedade brasileira, na Parábola, que é também um livro, em parte, de intervenção, além de ser de reflexão sobre norma, onde você aplica boa parte dessa reflexão a explicar um caso concreto. Tudo isso publicado em três anos, num período de três anos. Queria que explicasse um pouco como é —já falou um pouco agora das referências —, mas como vai desenvolvendo nesse diálogo com esses autores a sua reflexão sobre a norma no Brasil.
MB: Sim, a partir da tese de doutorado, entrei em contato com vários textos, como disse, de várias pessoas, e, ao mesmo tempo também descobri um livro publicado no Quebec, pelo Conselho da Língua Francesa do Quebec, um livro de 800 páginas, chamado simplesmente La norme linguistique, que reunia muitos trabalhos sobre o debate normativo em diferentes sociedades, em diferentes épocas, em diferentes lugares. Eu fiquei muito impressionado com aquele trabalho e resolvi traduzir alguns daqueles textos. Escrevi pra o Conselho da Língua Francesa do Quebec, recebi a autorização, selecionei alguns textos, traduzi e reuni nesse primeiro volume chamado Norma linguística. Ao mesmo tempo, eu achava necessário que também se conhecesse o pensamento das pessoas no Brasil, da nossa área, das linguistas e dos linguistas sobre a questão normativa. Assim, organizei um segundo volume chamado Linguística da norma, pra fazer um espelhamento com Norma linguística, e convidei diversas pessoas para escrever nesse livro. Esses dois volumes constituem, digamos assim, duas faces de um mesmo debate. Um debate internacional e histórico, porque alguns textos do primeiro volume têm caráter histórico, e um debate que traz como linguistas brasileiros estavam percebendo o debate normativo entre nós. Essas são as primeiras obras em que vou me dedicando a esse assunto. Em 2003, publiquei A norma oculta. Por que em 2003? Porque justamente nós tínhamos acabado de passar por um momento muito importante na história do Brasil, que foi a eleição do presidente Lula. Era o primeiro mandato do presidente Lula, eleito em 2002. Eu quis também aproveitar esse momento para falar sobre todo um debate em torno de língua que tinha se desenvolvido durante as campanhas eleitorais. Não só aquela, mais próxima, como as anteriores também. Várias vezes em que o Lula se candidatou as pessoas diziam, havia uma orquestração ideológica dizendo que ele não sabia falar, que ele falava tudo errado. Como é que nós íamos entregar a presidência para um operário que era praticamente semianalfabeto, que falava tudo errado? Então, quando ele foi eleito, fiz questão de pontuar esse momento falando sobre isso, sobre como a mídia tratava a forma de falar do Lula. E aí surge A norma oculta, em que eu trato desse aspecto e também um pouco sobre a história linguística do Brasil, como foi se constituindo essa cultura linguística brasileira. Esse foi o foco desse livrinho, que é um livro pequeno, também um livro de bolso, que também é, como você disse, um livro de intervenção chamado A norma oculta, porque sempre se fala muito da famosa norma culta, que ninguém sabe exatamente o que é, e eu tento mostrar que na verdade existe uma norma oculta, que está debaixo da língua, pois a língua é usada como pretexto para se tratar de outras coisas: o preconceito social, o ódio de classe, o racismo, isso tudo acaba sendo disfarçado pela língua. É como se falar mal, falar mal da língua da pessoa não equivalesse a falar mal da própria pessoa. Foi mais ou menos nesse sentido que eu produzi este livro em 2003, A norma oculta.
A intervenção no debate público sobre língua no Brasil
XL: Você comentou agora que a sua obra mais conhecida, a que teve mais repercussão, Preconceito linguístico, está um pouco na origem de tudo, até um pouco anterior à sua tese. É um livro que foi muito reeditado, que colocou no debate público a questão que, como você está falando, não era contemplada, pelo menos não dessa maneira no Brasil. E aí nesse livro, um livro lido em faculdades não apenas de Letras, de Educação, de História, Sociologia, é um livro realmente muito lido no Brasil. Nesse livro, você coloca na realidade duas questões, levanta duas questões que nem sempre se veem relacionadas. Eu não sei como você vê isto hoje com distância. De um lado, está a discriminação pela linguagem, que é a base do preconceito linguístico, um preconceito social que se manifesta na linguagem, mas, por outro, você também levanta nesse livro uma discussão sobre a própria definição de uma norma brasileira, o reconhecimento, a homologação duma norma-padrão brasileira. Na realidade, claro, são dois conflitos diferentes, mas que estão relacionados. E muitas vezes as pessoas até não conseguem encontrar essa relação. Enfim, se divulga essa ideia de que os linguistas, seguidores do Marcos Bagno, são contra a norma culta, defendem que todo mundo pode utilizar a língua de qualquer jeito, em qualquer circunstância e que não há normas, são os apóstolos do «tudo vale», tudo isso. Como você vê, primeiro, essas repercussões, suponho, não previstas originariamente por você, a partir da sua obra, e essa relação entre esses dois conflitos: o conflito que vem da discriminação pela linguagem e o conflito que é propriamente um conflito de autoridade, sobre a definição de uma norma-padrão brasileira.
MB: Pois, então, este livro, Preconceito linguístico, é pra mim até hoje uma grande surpresa, porque em nenhum momento imaginei que ele fosse ter essa repercussão que tem até hoje. Já passados vinte anos, cinquenta e tantas edições, mais de 300 mil exemplares vendidos, é uma coisa impressionante, até hoje as pessoas continuam escrevendo, falando sobre ele. As pessoas me escrevem dizendo assim: li recentemente «o seu livro» —eu já publiquei mais de trinta—, mas «o meu livro» é o Preconceito linguístico, é por meio deste livro que eu me tornei mais conhecido realmente. Então, foi uma grande surpresa, eu jamais imaginava que ele fosse causar todo esse debate, que tivesse essa grande repercussão. Mas parece que de fato existia uma lacuna na bibliografia linguística e educacional no Brasil que realmente tratasse das questões de linguagem de uma maneira muito mais direta, objetiva e politizada mesmo. Eu digo até brincando que o Preconceito linguístico é o meu Manifesto comunista. Ali realmente há uma tomada de posição política, ideológica muito clara, muito definida. Uma defesa sem meio-termo, defesa aberta da possibilidade de reconhecer que existe um português brasileiro, que tem a sua própria gramática, que existem múltiplas variedades do português brasileiro, que a grande maioria da nossa população não fala de acordo com o padrão normativo, porque nós temos um sistema educacional que é um dos piores do mundo. A grande maioria da população não tem acesso a uma educação de qualidade e, portanto, não tem acesso à leitura, à escrita e às normas linguísticas consideradas de prestígio etc. Ali há uma reivindicação muito clara em favor do reconhecimento da existência do português brasileiro, da sua legitimidade como língua plena que é, do reconhecimento das variedades ditas populares e também do reconhecimento de que elas têm um funcionamento linguístico, de que elas não são língua errada. Enfim, todo um discurso político em torno da língua que não é recente. A gente sabe, já nos anos 60, início dos anos 70, nos Estados Unidos, o Labov defendia a mesma coisa. Ele tem um texto clássico chamado «A lógica do inglês não-padrão», que é justamente o reconhecimento do funcionamento pleno como variedade linguística, como sistema linguístico da língua dos guetos negros dos Estados Unidos. Foi sob influência desse ativismo político, que já vem do Labov, Chomsky, que é outro grande linguista que também se envolve em questões políticas. Na Itália, nós temos Raffaele Simone, que também faz linguística e política ao mesmo tempo. Inspirado nesses modelos é que resolvi também estimular esse debate no Brasil. O Brasil é um país extremamente desigual, profundamente injusto. Nós vivemos numa sociedade que a gente pode caracterizar de genocida, porque a cada meia hora um jovem negro é assassinado no Brasil. Então, essa sociedade se estrutura em torno de uma injustiça social profunda. O nosso maior problema no Brasil, de fato, é o racismo. A sociedade brasileira só existe, só funciona como funciona porque ela tem um racismo estruturante, estrutural e estruturador. Assim, nós não podemos dissociar linguagem, língua, de todos esses indicadores sociais, de todas essas características sociais brasileiras. Foi isso que o livro fez. Sem meias palavras, dizendo as coisas, escrito numa linguagem a mais acessível possível, sem muitos termos técnicos, um diálogo muito franco com a leitora e com o leitor. Acho que foi isso que suscitou esse grande interesse pelo livro e, desde então, não para de ser publicado, continua sendo reconhecido como meu principal trabalho, é leitura praticamente obrigatória nos cursos de Letras, de Educação, de Jornalismo. Eu recebo, às vezes, mensagem de gente que estuda Contabilidade, Administração, Economia, e por alguma razão uma professora, um professor pediu que lessem esse livro. Então, esse debate, o debate em torno da discriminação por meio da linguagem, se tornou, eu acredito, mais intenso com a publicação deste livro. É uma postura muito bem definida e muito bem assumida. Isso também tem a ver com uma certa insatisfação minha com os trabalhos que eu lia. Eu lia trabalhos de sociolinguistas que faziam aquela bela descrição de algum fenômeno linguístico, de alguma variedade linguística específica, e no final, nas três últimas linhas, diziam “este trabalho pode contribuir para atenuar a discriminação pela linguagem, o preconceito linguístico”. Eu achava que o foco devia ser ao contrário. A gente devia começar a falar da discriminação pela linguagem, do preconceito linguístico, depois explicar cientificamente, com termos técnicos, por que que essa linguagem não é errada, não é feia, não é ilógica. Foi esse o jogo que eu tentei fazer ao publicar esse livro.
XL: De fato, você é um dos poucos linguistas brasileiros que toma partido de uma forma explícita no debate normativo, que faz propostas concretas. De alguma maneira, e isso possivelmente surpreenda a muitos e a muitas, você também é um normativista. Eu queria que comentasse isto. Você tem obras que são claramente de proposta normativa. Eu gosto muito do livro que se chama Português ou brasileiro? Um convite à pesquisa, o Não é errado falar assim, onde você lista uma série de fenômenos que são condenados por algumas gramáticas, por alguns textos normativos, mas que são comuns na fala dos brasileiros e na escrita dos brasileiros, você mostra isso. Ou, de uma forma muito mais rotunda, claro, na sua Gramática pedagógica do português brasileiro, que você denomina uma gramática propositiva, uma gramática que propõe uma norma-padrão. Eu queria que você explicasse sobre que modelo de padronização, numa realidade como a brasileira, tão desigual, que modelo de padronização você defende e que propostas você tem, desenvolveu, ou tem desenvolvido, pra levar adiante essa proposta normativa no ensino no Brasil, acolhendo a diversidade, obviamente sem condenar, sem proscrever os usos mais populares.
MB: Olha, eu começo dizendo que a minha formação marxista é que me leva muito a ser não só alguém que estuda e descreve a língua, como alguém que tenta ter uma atuação realmente prática, a querer fazer uma intervenção. Você já me chamou de agente glotopolítico, eu acho que é por aí mesmo. Eu sempre me lembro daquela frase famosa do Marx que diz “os filósofos têm se contentado em descrever o mundo; trata-se, porém, de transformá-lo”. Então, eu sempre digo «os sociolinguistas têm se contentado em descrever as relações entre linguagem e sociedade; trata-se, porém, de transformá-las». Com base no que a gente sabe da linguística, especialmente da sociolinguística, isso pode nos servir de instrumento para alterar a realidade. E, no caso brasileiro, especificamente, trabalhar na educação, na escola. Nós temos que fazer esse vínculo entre os achados da sociolinguística, a descrição do português brasileiro e ensino de língua, letramento, alfabetização, a formação das professoras e dos professores. É esse trabalho que eu tento fazer. Não só falar sobre a língua, dizer como a língua é, mas também como esse conhecimento que nós temos pode se transformar numa —vou usar a palavra revolucionária mesmo—, numa arma para reconstruir as relações linguísticas no Brasil. O nosso debate normativo é extremamente complexo. Se você me permite, eu vou até me deter um pouco nesse aspecto. Nós sabemos que a norma-padrão convencional é extremamente elitista. Pouquíssimas pessoas no Brasil realmente conhecem e sabem usar plenamente a norma-padrão tradicional. É uma minoria extrema que realmente conhece esse padrão convencional que vem descrito nas gramáticas de perfil normativo. Diante dessa realidade o que foi que muitas e muitos linguistas propuseram a partir dos anos 70 e 80? Substituir essa norma-padrão convencional por uma norma de referência mais próxima dos usos autênticos das camadas cultas da população. Então, se desenvolveu no Brasil, a partir de 1970, o famoso Projeto NURC —Norma Urbana Culta—, que já tem mais de 50 anos, portanto. É um projeto importantíssimo que fez o mapeamento das variedades urbanas cultas brasileiras. A partir daí, foi produzida a Gramática do português culto falado no Brasil, um trabalho monumental que reuniu dezenas de linguistas. Nós temos hoje um conhecimento muito solidificado, muito consolidado sobre como é a língua falada das camadas cultas da população brasileira. Esse conhecimento, essa que é a proposta da linguística brasileira dos anos 80 e 90, é que, com base nesse conhecimento que nós temos de como é a língua das pessoas cultas no Brasil, que isso servisse de base para a formulação de uma norma de referência para o português brasileiro. Mas aí vem a pergunta: quem são essas pessoas cultas? Nós vamos criar uma nova norma culta, que é o conjunto das variedades faladas pelas pessoas classificadas como cultas. Mas quem são elas? Ora, elas são essencialmente brancas, da zona urbana, da classe média pra cima – classe média e alta –, com curso superior completo. Portanto, menos de 20% da população brasileira, porque menos de 20% da população brasileira têm o diploma de curso superior. Cinquenta anos atrás, veja, muito menos, muito menos gente tinha diploma superior no Brasil. O Projeto NURC, quando explicita a pessoa que está servindo de informante, diz o sexo, diz a idade, diz a profissão, mas não diz a raça. Ora, todo mundo que foi entrevistado pelo Projeto NURC é gente branca. Porque se só agora nós começamos a ter uma população negra com acesso à universidade, cinquenta anos atrás eram pouquíssimas as pessoas negras que tinham acesso à universidade. Então, se a nossa proposta de norma de referência para o português brasileiro for a língua usada pelas pessoas brancas da zona urbana, de classe média e alta, com curso superior completo, nós estamos criando de novo uma norma elitizada, um pouco mais ampla, mas só um pouco mais ampla do que o padrão tradicional. Então, nós temos aí esse sinal de alerta. Tá, mas por que tem que ser a língua dessas pessoas? Os movimentos sociais das camadas oprimidas da população brasileira, essencialmente negras, reivindicam cada vez mais para si as falas consideradas erradas, as variedades da periferia, porque é nessa língua que essas pessoas exprimem autenticamente a sua revolta contra o modelo de sociedade desigual, injusta e genocida que é a sociedade brasileira. Por que então querer que elas se submetam a uma norma de referência que mais uma vez deixa essas pessoas de fora? Nós temos todo um grande movimento do hip-hop, o movimento do rap, o movimento das periferias brasileiras que está pujante, está cada vez mais forte, lutas sociais, movimentos sociais, mandatos políticos, campanhas para eleger pessoas negras, mulheres negras, pessoas trans, LGBTs, um pulsar de movimentos sociais no Brasil. Essas pessoas não são falantes dessa norma urbana culta branca altamente letrada. Então nós temos aí esse impasse. Como é que nós vamos querer criar essa norma de referência? No entanto, pra mostrar a complexidade da coisa, também existe um desejo de muitas e muitas pessoas das classes sociais mais pobres de aprender a falar bonito, de aprender a falar correto, de aprender a falar bem, como falam as pessoas brancas da classe média e alta da zona urbana. Existe esse desejo, a língua bonita das pessoas ricas é aquilo que eu desejo falar. Então, ao mesmo tempo que nós temos movimentos sociais engajados em reivindicar que a sua maneira de falar, que as suas variedades sejam reconhecidas como tais, nós também temos uma grande parcela da sociedade que tem a aspiração de aprender a falar bonito, de aprender a escrever bem etc. Nós temos aí todas essas variáveis em jogo. O acesso da população negra à universidade, a formação de linguistas não brancas e não brancos, todo o grande debate sobre gênero e orientação sexual, tudo isso começou a alterar e vai alterar o debate normativo. Porque, veja, os linguistas que propunham uma nova norma eram todos brancos de classe média urbana. Agora nós temos pessoas que vêm de outras camadas sociais e estão se apoderando também do conhecimento acadêmico e certamente vão começar a propor outras coisas. Já estão propondo. Nós já temos publicações de linguistas negros e de linguistas negras. Então, esse debate normativo está cada vez mais complexo. Isso vai criando para nós, linguistas de uma geração anterior, mais ou menos acomodados com aquilo que a gente achava que deveria ser: «ah, nós temos aí uma norma culta urbana também brasileira. Ela que vai ser o padrão do Brasil». Mas e o resto? Sempre essa pergunta. Então, para mim, a coisa está muito ainda nebulosa nesse sentido. Eu venho contestando isso: essa ideia de que nós temos que oferecer como norma de referência esse conjunto de variedades urbanas das camadas cultas que são essencialmente brancas. Acredito que estamos vivendo numa época em que as normas se diluem cada vez mais, se hibridizam, se mesclam, não só as normas e as variedades das línguas particulares, mas também há um entrecruzamento de línguas mundo afora. Hoje nós temos a capacidade de comunicação com pessoas de outros lugares. Nós começamos a falar português, passamos pro espanhol, pro francês, pro italiano, pro inglês. há uma hibridização geral das normas de comportamento, das normas sociais, das normas linguísticas também. Não vejo muito lugar para normas fixadas num mundo em que a comunicação se processa de modo tão veloz. E o problema também de novo é que existe uma demanda social por normas linguísticas. As pessoas querem saber se o certo é X ou se o certo é Y. Mas eu acho que nós não podemos ceder à tentação de querer satisfazer a essa demanda. O mais democrático, eu acho, seria mesmo questionar essa demanda. Mostrar que ela está vinculada a um desenho de sociedade nada democrático, hierarquizado, desigual e injusto. Ou seja, capitalismo, né? Pode parecer utópico, mas acho que sem utopia é melhor, então, nem entrar no jogo.
XL: A sua intervenção, Marcos, no debate sobre a língua, claro, ela se dá basicamente nesses dois meios, sobretudo na educação, porque o que você propõe com essas novas propostas normativas, com esses novos modelos de norma-padrão, mais abertos, flexíveis, na realidade toda uma nova educação linguística e uma nova escola, mais democrática, onde entrem as vozes todas. Nesse ponto, a sua proposta é bem mais clara e bem dirigida. O que eu queria perguntar é essa outra parte da intervenção, que está presente nos seus interesses desde o início, que é na comunicação social, na mídia, a quantidade de preconceitos que circulam. Você tem participado de muitos debates sobre língua, nos últimos anos talvez mais afastado da grande mídia por vontade própria, mas já participou em debates em televisão com aqueles comandos paragramaticais, nos grandes debates sobre língua aqui no Brasil. Eu lembro de uma entrevista que você deu na Caros Amigos —aquela revista mensal—, uma grande revista brasileira, que tinha uma entrevista central feita por todo o comitê de redação, por vários jornalistas, onde você convencia eles de que efetivamente o preconceito linguístico era um preconceito social, que não existia a língua certa em si, e depois você passou a ser colaborador. Aquela conversa foi muito interessante, porque foi difícil pra eles entenderem, né, que o preconceito contra a forma de falar é preconceito contra as pessoas, que todas as variedades têm sua lógica interna. Como você vê esse debate, ainda, na mídia social e o que pode ser feito pra romper essas barreiras? A gente, os linguistas, com o conhecimento da linguística, enfim, ultrapassar o âmbito da academia e se entrosar mais com o debate social?
MB: É muito difícil, porque a ideologia linguística normativa é muito antiga, nós sabemos. A gramática tradicional tem aí os seus 2.500 anos. Costumo dizer que é uma religião mais antiga do que o próprio cristianismo. Ela teve muito tempo pra se fixar, pra entrar no próprio DNA da nossa cultura. Tanto é que, quando se trata de língua, temos uma união perfeita entre esquerda e direita. Tanto a extrema direita quanto a extrema esquerda acreditam que as pessoas em geral falam mal, que é preciso ensinar a forma correta, que o português está em decadência, esse é um discurso que é compartilhado em todo o espectro político. Só muito recentemente é que nós temos conseguido convencer as pessoas de perfil progressista, as pessoas de esquerda, de que esse discurso sobre língua é um discurso reacionário, é um discurso injusto e que contribui para a desigualdade social, pra manter as pessoas nas suas posições subalternas. Isso quando chega a mídia, no caso da mídia brasileira que é essencialmente uma mídia de direita – eu digo que tenho muita inveja quando chego em alguns países e encontro publicações que vão da extrema esquerda à extrema direita; no Brasil, a gente só tem da direita pra extrema direita. A grande mídia brasileira é toda de direita. Contribuiu com o golpe que depôs a presidenta Dilma. Contribuiu para nós estarmos hoje com esse desgoverno absurdo, alucinado, apocalíptico, genocida. A nossa mídia é muito complicada, ela é extremamente oligárquica, faz uma defesa profunda do tipo de sociedade que é a nossa. Então, debater língua na mídia é muito difícil porque de antemão nós já topamos com esses dogmas todos, com essa crença muito arraigada de que as pessoas falam errado, de que as pessoas que não falam bem não podem ter direito aos bens sociais, a bons empregos e por aí vai. Eu, durante muito tempo, realmente aceitei os debates, ia pra televisão, dei muitas entrevistas no rádio, muitas entrevistas também para jornais e revistas. Mas, recentemente, depois do golpe de 2016 pra cá, tenho me recusado a colaborar com a grande mídia, essa mídia oligárquica que realmente contribui para manter a sociedade brasileira como uma das mais desiguais do mundo. Então, resolvi parar um pouco com essa colaboração, porque é uma forma de protestar. Protestar contra esse papel que a mídia desempenha de preservação de todas as formas de exclusão social. Por isso que eu tenho preferido usar as redes sociais, usar outras mídias… Felizmente nós temos agora outras formas de divulgação. Temos as lives, temos as redes sociais, o YouTube etc. Nós já podemos abrir mão da mídia tradicional pra fazer um debate mais esclarecido e mais politicamente engajado também.
Reescrevendo a história do “português”
XL: Na sua defesa do português brasileiro, que você define como uma língua já independente do português europeu, você revisita, faz uma releitura da história do que conhecemos como língua portuguesa e aí reivindica, por exemplo, a origem galega do português, reconhecendo a independência do português europeu em relação ao galego, que, de alguma maneira —eu penso, você me diga se penso bem—, uma forma também de justificar hoje uma nova independência do português brasileiro em relação ao português europeu. Enfim, o que eu queria perguntar era: você vê aí, você descreve, claro, o resultado da colonização linguística portuguesa como um mundo que dá lugar a um grupo de línguas que você define como portugalegas, como um grupo linguístico. Há muitas pessoas que pensam que interpretar essa realidade linguística diversificada, em termos de línguas diferentes, enfraqueceria, digamos, a posição da língua portuguesa ou dos falantes da língua portuguesa no mundo, por acabar com essa noção de lusofonia, essa idealização de uma língua internacional portuguesa. Enfim, mesmo entendendo essa posição, queria que explicasse como você vê o tipo de relações que ainda se podem estabelecer entre as diversas variedades portugalegas ou línguas portugalegas, aproveitando essa relação histórica. Como você vê, sobretudo, considerando que, por exemplo, entre Brasil e Portugal há uma grande falta de comunicação, quase não chegam enunciados, textos, filmes, música portuguesa no Brasil. A relação no outro sentido é um pouco mais intensa. Você acha que é possível construir algum tipo de comunidade a partir dessa realidade diversa?
MB: Pois então… este é mais um dos meus… das minhas frentes de trabalho, que é reescrever a história da língua portuguesa para poder fazer uma nova interpretação do que é o português hoje no mundo. Eu tive uma grande oportunidade na minha vida que foi justamente no ano de 2006 conhecer a Galiza. O nosso querido amigo, grande linguista, Henrique Monteagudo, me convidou. Eu tinha uma noção muito vaga do que fosse o galego, mas fui lá, dei um curso na Universidade de Santiago de Compostela, participei de eventos na Universidade de Vigo, conheci a região, ouvi a língua falada, estudei bastante o que era o galego, li a gramática, li vários trabalhos sociolinguísticos e fui conhecendo, fui me dando conta desse fenômeno, desse fato, tanto que sempre escrevo essa frase: «o português não veio do latim». O português é simplesmente o galego com outro nome. Então, o nacionalismo identitário português e o século 19 é que fizeram essa ruptura radical, essa tentativa de romper com o seu passado galego. Isso já tinha sido feito no Renascimento, quando os primeiros gramáticos, os primeiros grandes filólogos portugueses quiseram caracterizar a língua de Portugal como uma língua culta, bonita etc., se distanciando do galego. No século 19, isso vai reaparecer. Com toda aquela ideologia do Estado-nação, a língua como símbolo da pátria etc. Então, o próprio termo lusitano, costumo dizer isso, a Lusitânia não incluía Portugal inteiro. A Lusitânia incluía parte do centro-sul de Portugal. Isso já deixa o norte, e consequentemente a Galiza, fora da Lusitânia. Então, os portugueses se identificando como os lusitanos é uma forma de tentar fazer com que a nacionalidade, a língua, a cultura, o povo tenham surgido ali dentro daquelas fronteiras. A descoberta do galego pra mim foi muito importante porque me despertou pra tudo isso. E o outro vetor por aí tem a ver com a linguística histórica. A nossa linguística histórica parou no século 19, as famílias linguísticas se interrompem ali. A narrativa de como de cada língua foram derivadas outras tantas línguas, isso para no século 19. A gente descreve o indo-europeu, chega ao latim, do latim às línguas românicas e ponto. E essas línguas românicas que foram levadas durante quatrocentos anos, durante o período colonial, que foram levadas pra outros continentes, foram transplantadas e começaram a se transformar ali? O português, o mesmo português de quinhentos anos atrás, o português no Brasil, em Angola, em Moçambique, no Timor, nos diferentes lugares, é o mesmo português? Por que que a gente pode falar, por exemplo, que quinhentos anos depois do desmoronamento do Império Romano já existiam ali germes das línguas românicas, mas quinhentos anos depois do empreendimento colonial de Portugal, Espanha, França, a gente não pode falar de novas línguas que surgiram desse empreendimento? Nós temos aí como sempre o embate entre uma tentativa de fazer um trabalho científico e ocultar a ideologia que há por trás disso. Esse é o grande problema. Por que não podemos considerar o português brasileiro e o português europeu como duas línguas diferentes? Muito próximas, aparentadas, é claro. Mas o português e o espanhol também são muito aparentadas, muito próximas, a intercompreensão é bastante simples ali. Por que nós não podemos considerar português europeu e português brasileiro como duas línguas diferentes? E podemos falar até do ponto de vista mesmo sistêmico, estrutural. A nossa morfossintaxe brasileira é muito diferente. Há coisas que só funcionam no Brasil. A nossa fonética e fonologia, então, completamente diferentes. É uma forma também de reivindicar a autonomia do português brasileiro com relação ao português europeu. Reconhecer esse conjunto de línguas nascidas do imperialismo colonial português é também um posicionamento ideológico contra outro posicionamento ideológico que é muito vigoroso no Brasil e também em Portugal. Essa ideia de que os portugueses são os donos da língua, de que nós falamos uma língua emprestada e, pra piorar, corrompemos, destruímos essa língua, maltratamos essa língua. Eu acredito que não é mais possível continuar levando adiante esse discurso de que 210 milhões de brasileiros, num país maior do que toda a União Europeia, a décima economia mundial, essas pessoas falam pior do que os 10 milhões de portugueses que moram naquele país pequeno, periférico com relação à própria Europa e sem importância geopolítica no mundo. É um debate que pra mim é muito importante. Eu sempre digo: «eu não estou brigando com os portugueses». A minha briga é interna. É pra que nós, brasileiros, não acreditemos mais nesse mito de que só os portugueses falam bem, de que nós falamos mal, de que ninguém no Brasil fala bem. É uma valorização do português brasileiro, da nossa língua. Eu acho que a melhor estratégia discursiva seria mesmo reconhecer que é uma língua diferente que pertence a um grupo de línguas aparentadas, que eu chamo de línguas portugalegas, porque derivam mais remotamente do galego medieval. Essa que é a ideia. E esse discurso ufanista: «o português é uma das línguas mais faladas do mundo». Mentira! O português brasileiro é que é uma das línguas mais faladas do mundo, porque nós somos 210 milhões. Se todas as outras pessoas do mundo que falam português trocarem de língua, o português brasileiro vai continuar sendo uma das línguas mais faladas do mundo. Então, é por isso que eu falo que a tal da lusofonia é uma ilusofonia. É um construto ideológico que não leva em consideração as características próprias de cada país, que desconsidera o legado colonial profundo que marca de maneira muito cruel as sociedades africanas que se tornaram independentes há pouquíssimo tempo. Todo o legado colonial ali é terrível, a exploração, a falta de infraestrutura, a falta de escola. Por que ficar fazendo esse discurso ufanista? «Todo mundo fala a língua». «É uma das línguas mais faladas do mundo». Em cada país nós temos situações muito diferentes. Em Cabo Verde, o português é uma língua oficial, é língua da instrução, não é falada por todo mundo, a língua mais usada é o crioulo. A mesma coisa na Guiné, a mesma coisa em São Tomé e Príncipe. Em Timor-Leste, a juventude, a geração mais nova não quer saber do português, tem muito mais interesse no inglês, porque a Austrália está ali do lado. A gente tem que olhar pra realidade dos países de língua oficial portuguesa de forma realista, sem esse discurso ufanista. Por exemplo, a Guiné Equatorial, «oh, agora nós temos mais um país de língua oficial portuguesa». É uma aberração absoluta! É uma ex-colônia espanhola querer incluir o português como uma de suas línguas oficiais. Uma ditadura que está ali há quase trinta anos explorando o povo, um regime que é muito malvisto internacionalmente e tenta se filiar ora à francofonia, agora à tal da lusofonia. Nós temos que rever esse conceito pra tentar criar, sim, uma comunidade de países, uma comunidade de sociedades que tenha como base esse parentesco linguístico, mas com outra vertente ideológica que não seja essa. Até porque essa daí não tem efetividade nenhuma. Não tem publicações, não existem órgãos internacionais que permitam o intercâmbio entre as pessoas que falam a língua etc. Eu acho que nós precisamos rever toda essa ideia da lusofonia, com bases mais realistas.
Tradutor, escritor, poeta, divulgador….
XL: Muito bem. Marcos, para terminar, queria falar das suas outras facetas, dimensões, além de como sociolinguista, teórico, gramático, pessoa que intervém sobre a língua no Brasil, você é tradutor, um tradutor de várias línguas, sobretudo do francês, inglês e italiano, tradutor de obras literárias, mas também sobretudo de obras do nosso campo, de linguística, você traduziu ou participou da tradução dos Padrões sociolinguísticos, de Labov, traduziu recentemente Meillet. Enfim, a sua influência dentro da área tem a ver com o seu trabalho constante como tradutor, como criador de obras de referência, a Gramática é claramente uma delas, mas o Dicionário crítico de sociolinguística também é uma obra fundamental, de referência. Isso tem a ver com outra característica que é bem peculiar, acho, da nossa área que é o seu trabalho junto com uma editora. Queria que falasse um pouco da sua relação com a Parábola, como nasce, enfim. Você tem uma política mesmo junto com a Parábola, que é também outro agente glotopolítico, né? Tem uma política pros estudos de linguagem, uma política linguística para o Brasil, e você participa muito ativamente dela. Queria que falasse disso, pra terminar, e depois da sua obra literária, porque você é escritor em vários gêneros. Começa precisamente com A língua de Eulália, que é uma novela sociolinguística onde você junta a paixão pela linguística e a literatura, mas você desenvolveu sempre em paralelo esse trabalho literário. Então, queria que também falasse disso e dos seus projetos imediatos, nos dois sentidos.
MB: A Parábola Editorial vai completar, neste ano de 2021, vinte anos de existência. É um projeto do nosso querido amigo Marcos Marcionilo, e eu participei do nascimento da Parábola, até o nome fui eu que dei. Sugeri que nós nos dedicássemos à linguística, à educação e, de fato, a editora conseguiu se transformar nessa referência. Realmente, não é só uma editora, como você bem falou, ela é uma agência glotopolítica por causa das coisas que publica. Então, nós temos os principais nomes da linguística brasileira publicados ali. E também muitas obras traduzidas. As pessoas acreditam que eu sou um dos donos da editora. Não sou. Eu sou apenas um grande amigo do Marcos Marcionilo. Nós temos uma relação muito íntima, muito próxima, nós somos parceiros de trabalho e, todos os projetos que eu apresento, ele acaba aceitando e vamos levando isso adiante. Eu tenho verdadeira paixão pela tradução. Na universidade de Brasília, muitas pessoas não sabem, mas eu sou professor de tradução. Eu não trabalho diretamente com a linguística, sou professor do Departamento de Tradução. Tenho verdadeira paixão pela tradução e sempre que leio alguma coisa que considero importante, eu traduzo imediatamente. Mesmo que seja pra uso particular, pra eu passar pros alunos, ou passar para colegas interessados, e, quando é possível, publicamos. Eu tenho isso, e é uma coisa que tenho desde muito jovem. Sempre que quero aprender melhor alguma coisa, eu traduzo essa coisa. Se eu estou lendo um texto em outra língua e se quero realmente me apoderar daquele texto, eu traduzo, porque assim aprendo mais, reflito mais, sou obrigado a me concentrar. Eu sou essencialmente escritor. Tenho até alguma dificuldade pra trabalhar em equipe. Acho fantástico quando vejo pessoas que conseguem fazer grandes projetos com vinte, trinta colegas, todo mundo trabalhando, produzindo, pesquisando. Eu não tenho essa facilidade. Eu sou, como já falei, um filólogo do século 19. Tenho alguma coisa de monge, apesar de ser eminentemente ateu, mas me concentro naquilo, é um trabalho muito pessoal, uma escrita muito particular. Tenho essa paixão pela escrita mesmo, pela leitura, pela língua, pela linguagem, e o fato de ser escritor é que me permite também escrever sobre linguística como se estivesse escrevendo uma novela, um conto etc. E tenho também uma grande ansiedade em preencher lacunas. Eu vejo que na nossa bibliografia em português faltam muitos livros importantes. Por isso que eu propus a tradução do texto clássico da sociolinguística, que é Fundamentos empíricos para uma teoria da mudança linguística, de Weinreich, Labov e Herzog. Propus a tradução do primeiro grande livro do Labov, que é Padrões sociolinguísticos. Nós temos um trabalho sociolinguístico variacionista impressionante no Brasil, mas os textos clássicos não estavam traduzidos. Então, achei que era importante. A mesma coisa com o dicionário de sociolinguística. A terminologia da sociolinguística é usada de forma muito pouco coerente, muito pouco precisa, principalmente na questão da norma. Então eu resolvi: «não, nós temos que definir esses termos», e produzi o dicionário de sociolinguística. Recentemente, no ano passado, em 2020, publicamos uma coletânea de textos de Antoine Meillet. Antoine Meillet é um importantíssimo linguista, mas acabou sendo superado, deixado de lado, por causa da explosão do estruturalismo, por causa da eleição totalmente injustificada de Saussure como o pai da linguística moderna. Todo um trabalho de reflexão sociológica do Meillet ficou abandonado. Eu quis resgatar esse trabalho do Meillet. Publiquei, selecionei, traduzi, anotei, então está aí o Meillet. A primeira vez que alguma coisa dele é publicada em português. Vai sair, neste ano de 2021, uma nova tradução minha do Curso de linguística geral, do Ferdinand de Saussure. Por quê? A primeira tradução brasileira já tem cinquenta anos. Ela foi escrita numa linguagem um pouco rebuscada demais, além de conter algumas falhas de tradução. Além disso, a primeira tradução vinha completamente pura, seca, não tinha notas, não tinha um estudo, não tinha nada disso. Assim, nós vamos lançar uma nova tradução mais próxima do português brasileiro contemporâneo, com muitas notas e principalmente com um estudo crítico meu em que tento mostrar que não tem cabimento ficar atribuindo a Saussure a paternidade da linguística moderna. Muitas das coisas que estão ali reunidas, sob o nome dele no Curso de linguística geral, já estavam em outros autores. Tento fazer uma recuperação dos conceitos que já estavam em outros autores do século 19 e que aparecem no Curso de linguística geral e, de repente, as pessoas começaram a dizer que aquilo ali eram ideias originais do Saussure. Então, está pra sair essa nova tradução. Também uma lacuna na nossa bibliografia, nós não temos nenhuma história da linguística escrita em português. Assim, há cerca de seis, sete anos, eu venho escrevendo uma história da linguística que, se tudo der certo, vai ser publicada também agora em 2021. Uma história da linguística desde a Antiguidade até as portas do estruturalismo, até o início do século 19. Essa história se detém exatamente no trabalho do Meillet. Falo do Saussure e termino em Meillet. Então, uma história da linguística. São essas coisas que me motivam: a tradução, o gosto pela escrita, a ansiedade de preencher lacunas. E temos aí um outro projeto, esse mais demorado, que é fazer uma tradução brasileira da grande obra do Hermann Paul, o grande linguista alemão, que é pra mim, na verdade, o livro dele, Princípios de história da língua, este livro, sim, é que deveria ser considerado como o nascimento da linguística moderna. Até porque muitos conceitos que Hermann Paul apresenta neste livro vão reaparecer no Curso de linguística geral, sem nenhuma referência à fonte original. Eu e uma grande colega, a professora Orlene Carvalho, que é especialista em alemão, estamos pensando em traduzir este livro, mas é um projeto aí para mais tempo, pra mais aí adiante. Então é isso… eu tenho esse gosto pela escrita, tenho esse amor pela tradução, as línguas me interessam de forma, assim, atávica, física mesmo, preciso escrever um pouco todo dia, preciso ler alguma coisa, estudar alguma coisa sobre alguma língua. Eu estou sempre nessa busca incessante de novos textos, de novas ideias, de novos temas e coisas novas pra traduzir. Enquanto eu tiver energia, vou fazendo isso.
XL: Muito bem, Marcos. Acabamos agora. Muito obrigado pela entrevista. Acho que foi muito esclarecedor, porque explicou muita coisa da sua trajetória. Muito obrigado!
MB: Eu que agradeço. Uma grande honra, um grande prazer!