Como a língua se relaciona com a política? De que maneira a dimensão do político se inscreve no funcionamento das línguas? Que conexões há entre o histórico, o político e a linguagem? Essas são algumas das questões sobre as quais a publicação de Língua e Política: Conceitos e casos no espaço da América do Sul lança luz. Escrita por María Teresa Celada e Adrián Pablo Fanjul, ambos docentes e pesquisadores da Universidade de São Paulo, a obra representa, especialmente no âmbito da universidade brasileira, uma valiosa contribuição para a formação de estudantes de ensino superior, sobretudo nas áreas de Letras e Ciências Humanas. Ao longo dos cinco capítulos que compõem o livro, os autores constroem, de modo claro e em linguagem acessível, um panorama de conceitos centrais acerca das relações entre o político e as línguas, abordando casos e situações do português e do espanhol, especialmente do espaço da América do Sul. Os temas abordados são encadeados de modo a facilitar as remissões a conceitos e tópicos trabalhados em diferentes partes do texto, favorecendo, assim, a fluidez e o aproveitamento da leitura.
Na seção de Introdução da obra, como forma de iniciar as reflexões que serão desenvolvidas posteriormente, é abordado o tardio desenvolvimento no Brasil de estudos que explorem a relação da linguagem com o político e o histórico. O texto aponta alguns fatores que concorreram para essa situação, tais como as especificidades do processo de constituição da linguística como disciplina autônoma, que confere sistematicidade a seu objeto deixando de lado a determinação histórica e política que atravessa a linguagem e a concepção das línguas como totalidades delimitadas, efeito das perspectivas instauradas pelos processos de formação dos Estados Nacionais, que promove um vínculo ideológico entre nação, Estado e língua.
Embora essas perspectivas tenham sido desde há muito questionadas, é somente a partir do final do século XX que se constrói um conjunto de saberes mais sólido que, com base em diferentes vertentes, trata de considerar o político como constitutivo do funcionamento linguístico. Entretando, conforme apontam precisamente os autores, esses conhecimentos ainda hoje não penetraram de maneira satisfatória os currículos da educação básica e do ensino superior, vindo a publicação da obra aqui abordada colaborar para mudar essa realidade.
No capítulo 1, «Conceitos fundamentais sobre língua(s) e política», os autores mobilizam noções fundamentais, principalmente baseados em estudiosos que se filiam à análise de discurso materialista e à sociolinguística, para discorrer a respeito das relações entre línguas, política e sociedade. Dessa forma, a partir de um relato em primeira pessoa de Celada sobre a determinação de seu nome, María Teresa/Maite, colocam-se em relevo, de forma bastante elucidativa para o leitor, os modos pelos quais políticas linguísticas podem afetar o funcionamento das línguas e, por conseguinte, dos falantes em suas relações com elas, no caso em questão, como a materialidade linguística e histórica do nome próprio se significa por meio do político.
Além disso, são introduzidos conceitos fundamentais produzidos, sobretudo, nos campos da sociolinguística, sociologia da linguagem e glotopolítica. No que diz respeito ao primeiro campo, a obra expõe as coordenadas de desenvolvimento da sociolinguística variacionista, em meados da década de 1960, o que implica a apresentação de importantes noções vinculadas a essa área de saber, tais quais, «heterogeneidade ordenada», «variável», «variantes» e «diglossia». Celada e Fanjul se voltam, então, especificamente, ao campo da sociolinguística que tem como foco ações políticas advindas de agentes públicos sobre as línguas, delimitando, assim, o escopo dos estudos da área de Política linguística, definida pelos autores, a partir de Calvet (1997 e 2002) «como “escolhas conscientes” em torno das relações entre línguas e vida social» (Celada y Fanjul, 2022: 47).
Dando continuidade à reflexão que vai sendo desenvolvida, o capítulo problematiza a incidência das pesquisas de política linguística sobre objetos relacionados a «escolhas conscientes» dos atores analisados, o que deixaria de lado importantes aspectos que poderiam ser investigados nesses estudos. Nessa esteira, os autores introduzem o conceito de glotopolítica e acrescem que nesse campo são produzidos trabalhos que se voltam, também, a intervenções sobre a linguagem realizadas de maneira «não conscientes», além de análises e intervenções no plano das políticas educacionais, culturais e científicas, e estudos de ideologias linguísticas. É justamente nesse interesse pela ideologia que, no Brasil, numerosas pesquisas que se debruçam sobre a dimensão ideológica da linguagem encontram, na aliança estabelecida entre a glotopolítica e a análise de discurso materialista, metodologias e modelos analíticos que vem se mostrando bastante produtivos.
O capítulo 2, intitulado «A intervenção política sobre a(s) língua(s): modalidades e conflitos», de autoria de Adrian Fanjul, propõe os seguintes questionamentos: «pode haver intervenção duradoura e eficaz sobre a linguagem verbal? Ações e empreendimentos de pessoas e de instituições podem trazer algum tipo de mudança, mesmo que parcial, para hábitos linguísticos dos falantes?» (Fanjul, in: Celada y Fanjul, 2022: 53). Para responder a essas questões, Fanjul destaca que são numerosas, ao longo da história, ações de diferentes alcances, que foram planejadas e realizadas sobre as línguas. Nesse sentido, resguardadas as devidas proporções entre elas, o texto apresenta exemplos de como intervenções sobre as línguas estão presentes desde situações cotidianas a ações de peso tomadas por agentes públicos, além de abordar os meios de comunicação, a indústria do espetáculo e o mercado editorial, cada um a seu modo, e com diferentes nuances, como instâncias que agem sobre a língua. Não obstante, segundo pontua o autor, é o Estado e seus aparelhos que constituem os agentes mais expressivos sobre as políticas linguísticas.
Assim, o capítulo descreve o cenário, entre os séculos XVIII e XIX, de criação e fortalecimento dos Estados nacionais enquanto formas de organização política global, cuja questão da língua «unificadora» se torna central e traz consigo outras questões intrinsecamente relacionadas, a saber, as ideologias linguístico nacionais e a padronização, intervenção política cujo foco era unificar a heterogeneidade geográfica e regional reconhecida como pertencente a uma língua, e não a outra. Fanjul, então, aborda os critérios ideológicos que podem ser mobilizados pelos agentes padronizadores de uma língua e demonstra que, na maioria das vezes, eles não foram pautados no pensamento científico que foi sendo desenvolvido sobre a linguagem. Esse debate leva o autor a discutir a problematização em torno ao conceito de «norma», o que prepara terreno para a discussão posterior de certos conflitos que se dão nos espaços de enunciação da América do Sul.
A obra pondera que a formação dos Estados nacionais, ademais de ações de padronização sobre a língua tomada como nacional, prescindiu da adoção de políticas para as outras línguas faladas no território, as quais encontravam na escola o agente institucional que reproduzia essa desigualdade entre as línguas de forma mais acentuada, posto que a educação estava centrada no ensino da língua nacional, de maneira a reforçar, cada vez mais, a diglossia já existente nesses espaços de enunciação.
Isso posto, o livro desvela, por um lado, a agência fundamental dos Estados nacionais na promoção e reprodução de normas por meio da regulação do ensino, por outro, faz importantes observações sobre como a maior parte das ações normativas sobre as línguas tiveram como agentes instituições ou pessoas investidas de grande reconhecimento social, com destaque, no que se refere à língua espanhola e aos territórios hispanofalantes, à Real Academia Espanhola (RAE). A obra ressalta ainda o surgimento de tensões relacionadas à padronização das línguas a partir do século XV, em razão dos processos de colonização, os quais foram responsáveis pela dominância de línguas que se estendem por vários continentes, tais como o inglês, o francês, o espanhol e o português. Essa tensão se estabelece entre possibilidades de padronização monocêntrica, quando a norma de prestígio de um Estado nacional se impõe como modelo para os demais, e pluricêntrica, cuja determinação das normas de prestígio provém de diferentes espaços normativos, os quais podem corresponder a diferentes países.
Feitos esses esclarecimentos, Fanjul demonstra, de forma bastante elucidativa, como o português e o espanhol se apresentam como casos diferentes no que diz respeito à padronização e à gestão da língua. Com relação ao primeiro, o estudioso salienta que não há, na área linguística do português, nenhuma instituição com afã normativo, prescritivo e centralizador equiparável ao da RAE. Além disso, por um lado, dado que essa língua somente é falada pela maioria da população no Brasil e em Portugal, e, por outro, que os demais países que a falam eram considerados como parte do império português até o século XX, foi sendo gestado um modo de padronização da língua considerado «bicêntrico», cujas normas de prestígio tinham como centro Brasil e Portugal.
Focando especificamente na realidade linguística brasileira, o capítulo toma como base a produtiva distinção entre «norma culta», variedade usada por pessoas de maior escolaridade e que vivem em espaços urbanos, e «norma padrão», modelo ancorado na produção gramatical normativa, reproduzido pela escola e por agentes que ganharam espaço na mídia e no mercado editorial. O texto, levando em conta as reflexões sobre esse tema, esclarece, de modo assertivo, que no Brasil há uma diferença muito acentuada entre essas duas normas, fator que contribui para a grande desigualdade e exclusão social existentes no país. Dessa forma, tomando como base os estudos de Ilari e Basso (2006), Fanjul localiza as origens da norma padrão brasileira como portuguesa, sem que, entretanto, sejam nela consideradas as mudanças linguísticas ocorridas nos dois últimos séculos. Ao tratar da língua espanhola, o autor delineia o panorama histórico e político do século XIX, em que são considerados importantes aspectos que favoreceram uma política centralizadora de padronização e gestão da língua por parte da Espanha, o qual se contrapõe ao registrado no século XX, haja vista o desenvolvimento de diversas normas cultas de prestígio nos países hispano-americanos. Essa oposição estabelecida, ajuda a desvelar a tensão travada entre um modelo de padronização centralizador e uma realidade linguística de padronização policêntrica, a partir do uso de normas cultas de prestígio desenvolvidas nas ex-colônias espanholas. Já no final do século XX, frente a novas conjunturas políticas, sociais, econômicas, registra-se uma reconfiguração no tensionamento dessas forças, reconfiguração essa marcada, para usar as palavras do autor, pelo «relançamento do nacionalismo linguístico espanhol», denominado «política linguística pan-hispânica», cujo lema se afirmava mediante a expressão «unidade na diversidade».
Por fim, o capítulo se encerra tecendo algumas reflexões sobre os motivos que levam a certa incompreensão de que as línguas – dada a sua onipresença em quase toda a totalidade das práticas sociais – são objetos de intervenções políticas, o que implica a invisibilização de sua heterogeneidade e seu caráter histórico. Além disso, a obra reforça como a ação de jogar luz sobre as intervenções políticas sobre a língua constituem condição sine qua non para projetos dotados da capacidade de desafiar hegemonias.
Passando ao terceiro capítulo, sob o título «Processos de Gramatização e Instrumentos Linguísticos» e assinado por María Teresa Celada, a obra apresenta uma série de considerações que articulam noções fundamentais formuladas no campo da história das ideias linguísticas (HIL) com pressupostos teóricos da Análise do Discurso (AD), trabalhando na aliança teórica que entre esses dois campos se faz no Brasil. Assim, a autora retoma conceitualizações apresentadas no capítulo anterior e amplia a reflexão a respeito das intervenções políticas sobre a língua. De maneira especial, o trabalho mostra como determinadas obras, concebidas como instrumentos linguísticos e tomadas como objetos discursivos, afetam as línguas, a constituição dos sujeitos da linguagem e o espaço de enunciação em que eles habitam.
Para as reflexões que são construídas no decorrer desse capítulo, dentre os aportes teóricos retomados por Celada, destaca-se o conceito de «gramatização», entendido, nos termos de Auroux (1992), como o processo de descrição e instrumentalização de uma língua tendo como base obras de referência do saber metalinguístico como a gramática e o dicionário. A noção de gramatização permite conceber, portanto, gramáticas e dicionários como instrumentos linguísticos, pensados por Auroux como publicações que ampliam a competência linguística do falante. Com uma leitura marcada pela perspectiva discursiva, Celada ressalta que os instrumentos linguísticos afetam as identidades e a maneira de se relacionar com a linguagem, não sendo, portanto, «exteriores ao sujeito». Pensados como objetos discursivos e tendo seu espectro ampliado de modo a incluir diversas instâncias de instrumentalização de uma língua, os instrumentos linguísticos são abordados a partir de suas condições de produção e em sua relação com a memória discursiva, colocando em relação ao que se diz com o que é dito em outro lugar, o que não foi dito ou que poderia ter sido dito.
A partir das considerações teóricas expostas na primeira parte do texto, a autora apresenta uma série de análises de diferentes instrumentos linguísticos, tais como o Diccionario Integral del Español de la Argentina e o Diccionario de la Lengua Española, tendo como foco a definição de espanglish nessas publicações. O exame minucioso dos verbetes em questão apresentado por Celada permite observar, na materialidade textual, que a autoria dessas obras significa de perspectivas ou lugares não coincidentes. No capítulo é abordada também a Nueva Gramática Básica de la Lengua Española (NGBLE) e se demonstra a filiação dessa obra à Nueva Política Linguística Panhispánica (NPLP), explorando os conflitos, tensões e contradições entre a padronização normativa que essa política arquiteta e a realidade pluricêntrica da norma da língua espanhola.
Os diversos aspectos agudamente abordados por Celada são interpretados pela autora como indícios que favorecem a fragilidade da relação do sujeito com a língua, inibem sua autonomia e impedem a constituição de saberes epilinguísticos, isto é, o saber não consciente que todo falante possui sobre sua língua (Auroux, 1992) fomentando o que a autora interpreta como uma «injunção para fazer duvidar, na direção de “fazer dizer”, isto é, para que o sujeito que quer dizer nessa língua diga de um modo (e não de outro)» (Celada, in: Celada y Fanjul, 2022: 141). O funcionamento da NPLP é trabalhado, ainda, em livros didáticos, em especial na obra Ven: Español Lengua Extranjera, publicação voltada para o ensino de língua espanhola que esteve muito presente em cursos livres e até mesmo em escolas regulares no Brasil. Nesse tipo de instrumento linguístico, os aspectos apresentados no texto apontam para a prevalência de uma forma linguística central à qual vão sendo subordinadas outras, em especial aquelas vinculadas ao espanhol falado em regiões da América Hispânica, movimento produtor de uma divisão que materializa o político na língua.
Por fim, a autora se debruça sobre determinados aspectos do processo de gramatização da língua inglesa, concentrando-se no exame da produção e circulação da «ideia linguística” que projeta o inglês como língua universal. De maneira especial, o capítulo se volta para a simplificação linguística de que o inglês é alvo e para o projeto Basic English, originalmente elaborado pelo filósofo e linguista inglês Charles Kay Ogden. Tal projeto tem a proposta de reduzir a língua inglesa a um número mínimo de «palavras universais», forjando assim uma língua que, existindo paralelamente ao «inglês normal», poderia ser «falada por todos». Assim, apresentando princípios fundamentais e análises contundentes, o terceiro capítulo da obra ilustra o modo como o processo de gramatização e o saber metalinguístico afetam as línguas e impactam os falantes e os espaços de enunciação. Os perspicazes apontamentos tecidos pela autora, ancorados em uma perspectiva de análise discursiva, dão ao texto uma fluidez que favorece a leitura e contribui para a formação de quem queira se aprimorar na compreensão dos processos de construção de sentidos.
No quarto capítulo do livro, cujo título é «Colonização linguística no espaço da América do Sul», Celada constrói um interessante percurso para tratar determinados aspectos do processo de colonização linguística com foco em certos espaços sul-americanos, especialmente as regiões correspondentes a Brasil e Peru. Pensando a língua como um lugar de memória, o texto apresenta um questionamento a respeito dos sentidos do termo «colonizar» e analisa o lugar discursivo a partir do qual a palavra é definida em dicionários monolíngues. Tal abordagem demonstra que os sentidos que se vinculam a esse termo variam segundo a posição: se a do «colonizador» ou do «colonizado». Em seguida, Celada trabalha a força da escrita no processo de colonização americana, abordando de maneira potente a relação entre escrita e oralidade. Para tanto, a autora retoma, especialmente, alguns fragmentos de cronistas mobilizados por Cornejo Polar, de modo a explorar a radical alteridade que a escrita representa na experiência colonizadora da América e a violência e morte que essa dimensão implica. A assimetria da relação travada pelos processos de conquista e colonização hispânico e lusitano é abordada no texto a partir de saberes formulados no campo da história, de modo a compreender o caráter dessa colonização quando pensada na conjuntura mundial. Os aspectos trabalhados e as reflexões desenvolvidas permitem compreender que a conquista e a exploração colonial da América devem ser consideradas como empreendimentos que respondem, em essência, a objetivos do capitalismo que se instaurava na Europa no século XV. Sendo assim, o (sub)desenvolvimento da região precisa ser interpretado à luz dessa dimensão histórica, bem como as dependências —sejam elas políticas, culturais ou econômicas— que afetaram essa região.
Elaborada essa base histórica, o texto se volta a questões mais propriamente linguísticas relacionadas à conquista e à colonização, abordando aspectos tanto do espaço brasileiro quanto do hispano-americano. Tendo em vista a definição de Bethania Mariani (2004), Celada entende o conceito de «colonização linguística» como um complexo processo histórico que envolve língua e memória e está sujeito a (des)continuidades e contradições. Dessa forma, pensando o caso do Brasil, são abordados sentidos do discurso colonial que atualmente ainda produzem seus efeitos e marcam a relação do brasileiro com a língua.
Ampliando a reflexão, a autora assevera não haver uma relação direta ou evidente entre uma língua e uma nação e aponta a diversidade linguística que desde o início do processo de colonização esteve presente no espaço conhecido atualmente como Brasil. Nesse sentido, tem destaque o papel das «línguas gerais», forma mediante a qual se denominavam as línguas autóctones bastante difundidas em determinadas regiões, que sendo empregadas a serviço da metrópole para o contato entre diferentes populações coloniais, foram alvo de sistematizações e descrições metalinguísticas. No caso brasileiro, a circulação da língua geral foi limitada por uma política linguística portuguesa instituída, em 1757, com o «Diretório de Índios». Ao analisar a textualidade do Diretório, a estudiosa aponta o tensionamento entre a homogeneidade linguística que a metrópole tenta instaurar na região conquistada e a real heterogeneidade presente nesses espaços, ressaltando a maneira como esse processo afeta a relação do falante com a língua e, inclusive, incide sobre o imaginário segundo o qual o brasileiro não fala bem. Enriquece sobremaneira essa reflexão o movimento que autora promove ao trabalhar aspectos da colonização linguística no espaço hispano-americano, mostrando como nesse caso a escrita teve um papel fundamental. De acordo com os estudos mobilizados no texto, compreende-se que, diferentemente da política empregada por Portugal, no caso hispânico houve uma proteção das línguas indígenas, declaradas como veículos de catequese pelo rei Felipe II em 1570. Em contrapartida, o espanhol desempenhou o papel de língua de poder na qual os colonizadores registravam toda espécie de documentação, não sendo exagero interpretá-la como uma «arma» do processo de conquista.
Diante das considerações apresentadas no decorrer do capítulo, Celada mobiliza um caso emblemático do que interpreta como gestos que se inscrevem no cruzamento entre (des)colonização e processos de integração regional, a saber a produção do Certificado de Proficiência em Língua Portuguesa para Estrangeiros (Celpe-Bras), cuja equipe de elaboração contribuiu com o grupo que desenvolveria, pouco depois, o Certificado de Español Lengua y Uso (Celu), do Consorcio Interuniversitario Español Lengua Segunda y Extranjera (Else). Ambos os exames se destacam por focalizarem o falante e sua relação com a língua em práticas discursivas elaboradas a partir de situações reais de interlocução, procurando avaliar a capacidade de desempenho dos candidatos sem se limitar ao binômio «correto/incorreto». De maneira clara e precisa, e com particular sensibilidade na escuta analítica, a autora finaliza o capítulo salientando os avanços que esses projetos significam e manifestando seu desejo de que ações como essas encontrem caminhos de continuidade e futuro.
Por fim, o capítulo 5, cujo título é «Mídia, indústria cultural e conflito linguístico», mostra como a esfera midiática constitui objeto de interesse para os estudos que incidem sobre o político na língua, com especial atenção às transformações registradas nas formas mediatizadas de reprodução e circulação de enunciados. Para tanto, ao traçar um percurso histórico do desenvolvimento do capitalismo como modo de produção hegemônico e retomando a conjuntura de formação dos Estados nacionais e dos processos de industrialização e urbanização, tal como desenvolvidos no segundo capítulo, a obra destaca a imposição de uma nova demanda nesse cenário: a necessidade de uma unidade linguística, a qual acarretará a expansão da educação primária e alfabetização, que, por sua vez, favorecerá o crescimento, sem precedentes, da mídia impressa. Ademais, o autor ressalta que a constituição de um mercado de bens simbólicos (Bourdieu, 2010) e de uma indústria cultural, aliada à ideologia linguística do Estado nação, ratificam os processos de delimitação imaginária das línguas, em outras palavras, o livro mostra como o desenvolvimento da mídia e da «cultura de massa» e a circulação e reprodução de enunciados nessas esferas impactam o imaginário sobre heterogeneidade linguística.
Tendo em vista as intervenções produzidas sobre as línguas frente a essa realidade descrita, a obra analisa ações glotopolíticas não necessariamente previstas pelo planejamento linguístico. Nesse sentido, voltando-se para o caso da língua espanhola, o capítulo relata como o desenvolvimento da mídia e da cultura de massa propiciaram a percepção de uma identidade linguística que não deixava de se distanciar da ideologia pan-hispânica, haja vista que, já nas primeiras décadas do século XX, registrava-se o compartilhamento e circulação dos mesmos textos em diversos países e cidades latino-americanos e, sublinhe-se, entre leitores inseridos em diferentes setores da população urbana, e com diferentes níveis de letramento. O autor assinala ainda que esse contato com diferentes variedades do espanhol nos países hispano-americanos foi potencializado no início do século XX, por meio do rádio, do cinema e de programas televisivos, sem que houvesse qualquer preocupação de «neutralização» da língua. Efetivamente, esse cenário muda nas duas últimas décadas do século XX, quando tentativas de «neutralização» do espanhol ganham força e, no que se refere aos meios de comunicação, o autor coloca em relevo dois fenômenos importantes: primeiro, grandes empresas televisivas começam investir em produções conjuntas, com atrizes e atores de diversos países e, segundo, a Espanha, mediante a vigência da política «pan-hispânica», passa a dar orientações para os meios de comunicação.
Estabelecendo uma comparação entre o histórico da mídia de massa no Brasil, a obra indica que não houve presença no país de produções em língua portuguesa provenientes de outros países da mesma forma que ocorreu nos países hispanofalantes e, nesse sentido, as tentativas de «neutralização» nos meios midiáticos incidiram sobre a variedade interna do português brasileiro.
Finalmente, o capítulo se centra no modo de funcionamento da mídia como agente padronizador e que, também, intervém no linguístico, especialmente mediante a produção e publicação de «manuais de estilo», instrumentos linguísticos de natureza normativa, que, comparados à gramática tradicional, parecem ser, inclusive, mais taxativos, oferecendo ao leitor orientações inequívocas. Nessa esteira, a reflexão construída pelo autor sobre esses instrumentos linguísticos o leva à conclusão oportuna de que
[…] a intervenção midiática sobre o linguístico aparece como a ocupação de um papel tradicionalmente reservado a outras instituições do Estado, ocupação investida imaginariamente com a ‘eficácia’ do mercado, mas destituída de todo caráter republicano. (Fanjul, in: Celada y Fanjul, 2022: 249)
Diante do percurso trilhado, o capítulo finaliza com alguns questionamentos e reflexões bastante pertinentes sobre o impacto da internet, das redes sociais e das novas tecnologias sobre a linguagem. Desse modo, pondera de forma muito bem fundamentada, que, se por um lado a expansão da alfabetização e o desenvolvimento dos meios de comunicação ampliam as possibilidades de apropriação de saberes, representação dos territórios e consulta de informações de diversa ordem, por outro, também se investem da capacidade, massiva, da perpetuação de relações de desigualdade e exclusão.
Como encerramento, sob o título «Considerações finais: língua, política e universidade», sem retomar de modo convencional o percurso construído ao longo dos capítulos, Celada e Fanjul reafirmam e dão continuidade ao produtivo diálogo com um de seus principais destinatários: a universidade pública brasileira. Nesse sentido, destacam o reconhecimento da capacidade dessas instituições em contribuir para as devidas transformações na educação básica e para a forma de relação do Estado, no desenho de políticas para a diversidade linguística, e dos meios midiáticos, no devido tratamento da heterogeneidade linguística. Cabe ressaltar que os autores assinalam ainda que é importante a definição de um lugar mais preciso para as políticas das línguas no currículo dos cursos de licenciatura que formam professores que trabalharão com a educação linguística dos alunos.
Esta resenha não poderia deixar de ratificar que a trama de sentidos que vai se constituindo na leitura do livro está permeada pelo posicionamento político de seus autores, que sempre têm no horizonte que os estudos e reflexões desenvolvidos nas universidades públicas podem orientar o planejamento linguístico e a formulação de políticas linguísticas mais acordes com realidade plurilíngue da América do Sul e que subsidiem, também, a construção de uma sociedade mais democrática e menos desigual e excludente. Essa, dentre tantas outras que poderiam ser enumeradas, já é razão, por si só, para a recomendação do estudo, da leitura e da ampla circulação dessa obra entre o público interessado no assunto, estudantes, professores e gestores da educação básica e do ensino superior, não somente dos cursos da área de Letras e Pedagogia, mas das humanidades de modo geral.
Fontes citadas
Auroux, Sylvain. A Revolução Tecnológica da Gramatização. Trad. Eni Puccinelli Orlandi. Campinas, Editora da Unicamp, 1992.
Bourdieu, Pierre (2010). El Mercado de los Bienes Simbólicos. In. El Sentido Social del Gusto: Elementos para una sociología de la Cultura. Buenos Aires: Siglo XXI, 85-152.
Calvet, Louis-Jean (1997). Las políticas lingüísticas. Buenos Aires: Edicial, 1997
_____ (2002). Sociolinguística: Uma Introdução Crítica. São Paulo: Parábola.
Ilari, Rodolfo y Renato Basso (2006). O Português da Gente: A Língua que Estudamos – A Língua que Falamos. São Paulo: Contexto.
Mariani, Bethania (2004). Colonização Linguística: Línguas, Política e Religião no Brasil (Séculos XVI a XVIII) e nos Estados Unidos de América (Século XVIII). Campinas: Pontes.
