1. Bakhtin: uma vida quase anônima
Mikhail Bakhtin (1895-1975), pelas circunstâncias de sua vida, foi um outsider. Era um pensador refinado, mas viveu distante dos principais centros universitários russos de seu tempo, e suas ideias só começaram a ser conhecidas muito tardiamente, já nos anos finais de sua existência.
Fez formação universitária na então capital da Rússia, São Petersburgo. A cidade, rebatizada de Petrogrado ao tempo da Primeira Guerra Mundial e, depois da morte de Lênin, de Leningrado, só recuperou seu nome original com a dissolução da URSS.
No período da guerra civil que veio em seguida à Revolução de outubro de 1917, Bakhtin deixou Petrogrado e buscou oportunidades de trabalho em cidades menores, como Nevel, no oeste da Rússia, e Vitebsk, hoje na República da Belarus, onde foi professor da educação básica.
Em 1924, com a situação política e econômica mais estável, Bakhtin voltou a Leningrado. No entanto, em razão de problemas de saúde (osteomielite em ambas as pernas), que o deixavam imobilizado por longos períodos, nunca conseguiu um trabalho permanente.
Em 1929, em meio à intensificação dos ataques à intelectualidade que marcaram os primeiros anos da era stalinista, Bakhtin foi preso, acusado de estar vinculado a grupos filosófico-religiosos clandestinos. Recebeu uma condenação de seis anos de desterro no Cazaquistão, onde trabalhou como contador numa fazenda coletiva.
Mesmo depois de vencido o tempo de sua pena, não pôde voltar a Leningrado porque ex-condenados por motivos político-ideológicos não tinham permissão para fixar residência nas cidades mais importantes da URSS. Desse modo, durante a Segunda Guerra Mundial, Bakhtin se mudou para Savelovo, uma pequena cidade a 120 km. a leste de Moscou, onde trabalhou como professor da educação secundária.
Terminado o conflito, Bakhtin conseguiu, em meio ao relativo degelo político da época, um emprego como professor de literatura russa no Instituto de Formação de Professores da Mordóvia, em Saransk, uma cidade provinciana a 650 km. a leste de Moscou. O Instituto foi transformado em Universidade em 1957 e Bakhtin permaneceu ali até sua aposentadoria em 1969, quando foi autorizado a se mudar para as cercanias de Moscou, onde morreu em 1975.
Em todo seu tempo de vida, apesar de ter escrito inúmeros manuscritos, raras vezes viu algum texto seu publicado. Em 1929, pouco antes de ser preso e condenado, saiu seu livro sobre Dostoiévski (Problemas da Arte de Dostoiévski) que, embora bem recebido pela crítica, logo desapareceu de circulação. Foi preciso esperar 34 anos para que um novo texto seu viesse à luz.
No início da década de 1960, doutorandos da Universidade de Moscou entraram em contato com o livro de 1929 e descobriram que seu autor havia sobrevivido aos sucessivos expurgos da era do totalitarismo stalinista, possivelmente pelo anonimato em que tinha vivido. Bakhtin passou, então, a receber atenção de parte do mundo intelectual russo e foi persuadido a reescrever o livro, cuja nova edição, agora com o título Problemas da Poética de Dostoiévski, foi publicada em 1963.
Dois anos depois, foi a vez de sua tese sobre Rabelais virar livro. Essa tese havia passado —entre 1946, quando foi apresentada, e 1952, quando foi finalmente aprovada— por um dramático processo de sucessivas sessões de defesa, face à reação de examinadores estritamente ligados às rígidas diretrizes da nova política cultural soviética que caracterizaram, no pós-guerra, o período chamado de jdanovista, em que o regime stalinista, sob orientação do segundo secretário e ideólogo do PC-URSS, Andrei A. Jdanov (1896-1948), deu fim à relativa liberalização dos anos de guerra. A tese, envolvida nesse imbróglio político, acabou sendo acusada de anticientífica, de formalista e de reducionista no trato do realismo de Rabelais e só recebeu aprovação final para um título inferior ao de doutorado.
Bakhtin ainda conseguiu publicar, em 1970, um breve artigo sobre a situação dos estudos literários na Rússia, a pedido do Comitê Editorial da revista Novi Mir.
Como se pode ver, as circunstâncias da vida de Bakhtin não foram favoráveis à circulação de suas ideias. Não pôde ser ouvido para além de suas salas de aula provincianas e, por consequência, não debateu com seus contemporâneos nem foi por eles debatido. Seu pensamento só começou a ser conhecido quando ele já estava em seus últimos anos de vida.
Depois de sua morte, seus manuscritos foram, progressivamente, publicados na Rússia e as primeiras traduções de suas obras começaram a aparecer, sempre em conta-gotas, no Ocidente, nas décadas de 1970 e 1980. Entre 1996 e 2012, um empreendimento editorial dos administradores de seu espólio reuniu seus textos em seis volumes.
Embora tenha escrito intensamente, sua produção, sem a perspectiva de publicação, permaneceu fragmentária e inacabada. E foi vindo a público postumamente sem qualquer ordem cronológica, alcançando o Ocidente também sem qualquer ordem cronológica e por traduções esporádicas, esparsas e nem sempre diretamente do russo.
Por muitos anos, não se teve a possibilidade de uma visão de conjunto de seus escritos, o que motivou diferentes (e até desencontradas) interpretações de seu estatuto intelectual: seria um crítico literário, como sugeriam as primeiras publicações vindas à luz? Ou seria um filósofo, como sugeriam os textos publicados posteriormente? Ou, ainda, seria um teólogo, como sugeriram alguns leitores com base em segmentos do seu manuscrito «O Autor e a Personagem na Atividade Estética»? Da mesma forma, muitas foram as dúvidas quanto a suas filiações teóricas: seria um formalista? Um marxista? Um pensador religioso? Um neokantiano? Um fenomenólogo?
Acrescido a isso tudo, houve ainda um acontecimento inusitado, qual seja, o quiproquó sobre a autoria de alguns livros. No início dos anos 1970, um crítico russo, Viatcheslav V. Ivanov, sem apresentar qualquer argumento efetivo, afirmou que o livro Marxismo e Filosofia da Linguagem, publicado em 1929, sob o nome de Valentin N. Volóchinov (1895-1936), tinha sido escrito por Bakhtin, atribuição de autoria que estendeu ao livro Freudismo, publicado em 1926, também sob o nome de Volóchinov e ao livro O Método Formal nos Estudos Literários, de 1928, publicado sob o nome de Pavel N. Medviédev (1891-1938). Resultou disso uma polêmica infrutífera e inócua, principalmente no Ocidente, polêmica que ainda hoje persiste em certos contextos, embora já superada em seus termos.
Essa esdrúxula situação limitou, muitas vezes, a percepção das peculiaridades de cada um desses autores e de suas múltiplas e inegáveis inter-relações, já que os três se encontraram regularmente durante dez anos, entre 1919 e 1929, num grupo de estudos em que partilharam um conjunto expressivo de ideias. Apesar de suas diferenças, tinham em comum a concepção de linguagem, segundo afirmou Bakhtin em uma carta dirigida a V. Kozhinov em 1961, transcrita em Bocharov (1994: 1016). Mas, como fica evidente pela leitura de seus respectivos textos, trabalharam com ela em diferentes direções teóricas e empíricas. Cabe, portanto, abandonar a polêmica artificialmente criada e respeitar as individualidades autorais e a reconhecer as especificidades teóricas de cada um.
Por outro lado, diante da dispersão dos manuscritos e do inacabamento de muitos textos, os leitores ficam desafiados a buscar uma sistematização do pensamento de Bakhtin. Vários caminhos foram já propostos nesse sentido. A tarefa não é fácil. Defendemos aqui a tese de que é possível alcançar uma razoável sistematização caso se tenha claro que o fundamento sobre o qual se sustentam todas as suas formulações filosóficas são gestos axiológicos. Bakhtin parte do princípio de que as condições objetivas nas quais vivem as sociedades determinam diferentes valorações do mundo natural e do mundo humano. Assim, filosofar sobre as diferentes esferas humanas (ética, estética, linguagem, cultura etc.) é elaborar conceituais que apreendam os diferentes princípios axiológicos que as organizam e seus encontros e embates.
2. Bakhtin: o filósofo e a política
Acreditamos que hoje está razoavelmente claro para os leitores de Bakhtin que ele foi, primordialmente, um filósofo. Formulou reflexões sobre a linguagem, a cultura, o riso e a cosmovisão carnavalesca, a estética, a ética e o discurso romanesco.
Nunca se dedicou diretamente a questões políticas, embora tenha anunciado, no mais antigo de seus manuscritos, que discutiria a ética da política na terceira parte desse seu primeiro ensaio, que, porém, nunca foi concluído.
Esse seu manuscrito foi escrito, provavelmente, por volta de 1920, mas só foi publicado em 1986 e recebeu, de seu editor Sergei Bocharov, o título K Filosofii Postupka. Já foi traduzido para várias línguas, entre as quais o inglês, com o título Toward a Philosophy of the Act; o espanhol, Hacia una Filosofía del Acto Ético; e o português, Para uma Filosofia do Ato Responsável.
Nesse texto, Bakhtin delineava sua intenção de produzir um amplo trabalho de filosofia, uma prima philosophia que desse conta do ato responsável, que, segundo ele, não poderia ser entendido com base em conceitos universais, em proposições e leis gerais, em formulações teórico-abstratas, mas somente de dentro de si mesmo, de modo participante, e não perdendo de vista que «o princípio arquitetônico supremo do mundo real do ato é a contraposição concreta, arquitetonicamente válida, entre eu e outro» (Bakhtin, 2010: 142).
É preciso destacar que «eu e outro» não estão aí apenas como indivíduos que interagem, mas são conceituados, no texto, como dois centros de valores que se contrapõem. Desde esse início, fica, portanto, explicitada a axiologia como o grande fundamento da sua filosofia. São os valores socioculturais e suas contraposições que funcionam como fator estruturante, como pedra angular de seu universo conceitual, em qualquer de suas dimensões.
O projeto filosófico amplo, delineado por volta de 1920, não se concretizou e, progressivamente, Bakhtin foi direcionando suas reflexões filosóficas para questões de estética literária, chegando a elaborar, a partir dessa temática geral, uma filosofia da linguagem quando tratou, em manuscritos da década de 1930, das especificidades do discurso romanesco, como detalharemos adiante.
Apesar de não ter tratado de política em seus textos, algumas de suas obras foram lidas como tendo motivações ou implicações políticas. Assim, sua tese sobre Rabelais (A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais), embora tivesse como referência a cultura cômica popular do Medievo, foi interpretada (cf. Clark e Holquist, 1998) como um libelo contra o totalitarismo político sob o qual Bakhtin vivia.
Viu-se, nesse texto, um retrato crítico do stalinismo, consubstanciado na oposição que Bakhtin delineou, em termos gerais, entre a cultura medieval oficial e a cultura popular cômica do mesmo período —a primeira caracterizada por um tom sério, dogmático, autoritário, reforçador da ordem vigente, consagrador das «hierarquias, valores, normas e tabus religiosos, políticos e morais correntes» (Bakhtin, 1987: 8); e a segunda, pelo tom festivo, jocoso, irreverente, antidogmático, transgressivo, diluidor das hierarquias e, em suas manifestações carnavalescas, regido pelas «leis da liberdade» (ibidem: 6).
Suas reflexões sobre o carnaval, tanto no livro sobre Rabelais quanto no livro sobre Dostoiévski, têm, claramente, um fundamento utópico: a perspectiva de que um mundo diferente é possível. Bakhtin viu no carnaval —entendido não de modo restrito, ou seja, apenas como uma festa, mas como todo um modo de apreender o mundo («uma cosmovisão carnavalesca», como afirma no livro sobre Dostoiévski – Bakhtin, 2008: 122) – uma poderosa força vivificante e transformadora, dotada de uma vitalidade indestrutível, porque nada absolutiza, apenas proclama «a alegre relatividade» de tudo (ibidem: 142), justamente por permitir uma vida às avessas, em que lei, proibições e restrições que determinam a estrutura e a ordem da vida ordinária são suspensas. O que se suspende é «antes de tudo o sistema hierárquico e todas as formas conexas de medo, reverência, devoção, etiqueta etc., ou seja, tudo o que é determinado pela desigualdade social hierárquica e por qualquer outra espécie de desigualdade entre as pessoas» (ibidem: 140).
Nesse sentido, a festa em si é importante apenas na medida em que, ao viver o carnaval, seus participantes podem visualizar a possibilidade de outro mundo, de negar o atual e afirmar o possível (mesmo que isso ocorra apenas no limite dos dias festivos). Contudo, mais importante que a festa é o que ele chama de cosmovisão carnavalesca. O carnaval, nesse sentido, é, no dizer de Bakhtin, funcional e não substantivo. É essa cosmovisão que materializa a força cultural do riso: dessacraliza os discursos oficiais, os discursos da ordem e da hierarquia, os discursos do sério e do imutável. Bakhtin não é, nessa perspectiva, o teórico do carnaval, mas o filósofo da carnavalização.
Talvez pelo fato de alguns leitores terem deixado passar essa distinção crucial entre a festa em si e a cosmovisão carnavalesca é que algumas controvérsias se estabeleceram quanto à adequação empírica e o poder heurístico de suas análises da cultura cômica popular medieval. De qualquer forma, o livro sobre Rabelais é um vasto catálogo das manifestações dessa cultura e uma exposição de sua dinâmica intrínseca. Se, efetivamente, era um libelo contra o stalinismo, é um tema inconcluso, embora uma interpretação instigante.
Anos depois das leituras políticas do livro sobre Rabelais, o crítico estadunidense Ken Hirschkop, em seu livro Mikhail Bakhtin: an Aesthetic for Democracy, publicado em 1999, vai identificar, na teoria do discurso romanesco, bases para uma reflexão sobre o tema da democracia e sua crise europeia. Segundo Hirschkop, Bakhtin, ao teorizar sobre o discurso romanesco, deixou implícita a lição de que uma política democrática necessita de uma cultura democrática. Em outras palavras, a democracia não está garantida apenas pelo formalismo legal e institucional. Ela pressupõe um amplo conjunto de disposições, valores e atitudes democráticas. Ela pressupõe, em síntese, uma ampla cultura democrática disseminada pela sociedade.
Assim, considerando que cultura e política democráticas têm de caminhar juntas, Hirschkop assevera que a democracia tem de ser muito mais que política no sentido estrito para ter sucesso como política no sentido estrito. Em razão disso, afirma que o dialogismo inerente à filosofia de Bakhtin deve ser entendido, fundamentalmente, como uma resposta ao problema histórico da cultura democrática, da cultura que incorpora o heterogêneo e chama para a dialogização das diferenças.
Para entender essas ilações políticas que Hirschkop faz a partir das teorizações de Bakhtin, é preciso ter em conta as formulações bakhtinianas sobre o discurso romanesco, o que nos remete à sua concepção de linguagem.
3. Bakhtin: o filósofo e a linguagem
Em suas formulações teóricas sobre o romance, Bakhtin conceituou esse gênero literário como um «fenômeno pluriestilístico, heterodiscursivo, heterovocal» (Bakhtin, 2015: 27). Em outras palavras, o romance é entendido como a representação estética da heteroglossia social —termo que equivale, em português, à palavra russa raznorétchie, composta de razno (diferente, diverso) e riétchie (discurso, fala, linguagem), que também é traduzida por pluridiscurso ou heterodiscurso. Não se trata, portanto, do plurilinguismo como tal, mas da múltipla discursividade que se materializa em cada língua.
Sua conceituação do romance se articula, portanto, com sua concepção de linguagem. Bakhtin se distancia, explicitamente, de uma abordagem apenas sistêmica das línguas, centrada em sua imanência léxico-gramatical, conforme assumida pela linguística estrito senso. No entanto, não desmerece nem descarta o objeto recortado e analisado pelos linguistas, mas se declara interessado em outras dimensões da linguagem. Seu foco é o funcionamento social da língua («a língua em sua integridade concreta e viva» —Bakhtin, 2008: 207), em particular sua estratificação no que ele chama de vozes sociais (expressão equivalente ao que hoje se poderia traduzir por discursos, também designados, em seus textos, de línguas sociais ou linguagens socioideológicas).
Essas vozes sociais são entendidas como compósitos verbo-axiológicos ou verbo-ideológicos e a língua como um conjunto de vozes sociais, como uma realidade heteroglóssica. Nessa perspectiva, a língua é sempre uma realidade heterogênea, não porque comporta diferentes variedades dialetais e sociolinguísticas, mas porque se estratifica em diferentes discursos, dá materialidade a diferentes vozes sociais, a diferentes matrizes significantes em que se combinam o verbal e o axiológico.
No texto «O Problema do Conteúdo, do Material e da Forma na Arte Verbal» (Bakhtin, 1990), escrito provavelmente por volta de 1924, Bakhtin estabelece uma distinção entre a sentença e o enunciado, dizendo que a primeira tem uma significação linguística, mas é, em si, indiferente a valores, porque não foi dita por nenhum sujeito discursivo. Não há, porém, enunciado neutro, indiferente a valores. Ao ser dito por um sujeito discursivo, social e historicamente localizado, o enunciado expressa uma posição avaliativa, remete a uma voz social, significa sempre em relação a um horizonte verbo-axiológico, assume ativamente uma posição semântico-valorativa. Nesse sentido, a atividade de enunciar «é a atividade que ama, exalta, denigre, celebra, deplora etc. Ou seja, é uma atitude axiologicamente determinada» (Bakhtin, 1990: 311).
Mas Bakhtin não se limita a apontar a estratificação axiológica da língua. Importa-lhe dar destaque ao que chama de heteroglossia dialogizada («O autêntico meio da enunciação, no qual ela [a língua] se forma e vive, é justamente a heteroglossia dialogizada» —Bakhtin, 2015: 42), entendida como a dinâmica dos encontros e embates das vozes sociais. Entre elas, se estabelece o que ele designa de relações dialógicas.
Em vários momentos de seus manuscritos, Bakhtin aponta para essa dimensão da discursividade. Ainda em «O Discurso no Romance», ele diz: «Como tais [como horizontes concreto-semânticos e axiológicos], todas elas [as vozes sociais] podem ser confrontadas, podem contemplar umas às outras, podem contradizer umas às outras, podem ser correlacionadas dialogicamente» (Bakhtin, 2015: 67). E, no livro sobre Rabelais, encontramos o seguinte trecho, uma síntese do que ele entende por heteroglossia e heteroglossia dialogizada: «As línguas são concepções do mundo, não abstratas, mas concretas, sociais, atravessadas pelo sistema de apreciações, inseparáveis da prática corrente e da luta das classes. Por isso, cada objeto, cada noção, cada ponto de vista, cada apreciação, cada entonação se encontra no ponto de intersecção das fronteiras das línguas-concepções de mundo, é englobado numa luta ideológica encarniçada» (Bakhtin, 1987: 415).
Neste ponto, alguns esclarecimentos se fazem necessários. Primeiro, é importante notar que Bakhtin tinha uma propensão à variação terminológica. Nesse sentido, os fenômenos recebem nomes diferentes em diferentes manuscritos e, algumas vezes, no mesmo manuscrito. Talvez isso se explique pelo fato de que seus textos raramente encontraram acabamento com vistas à publicação. Assim, o elemento organizador dos discursos (das vozes sociais, línguas sociais ou linguagens socioideológicas) – o seu posicionamento axiológico – é designado por expressões como pontos de referência axiológicos, centros de apreensão axiológica do mundo, sistema axiológico-acentuais, horizontes concreto-semântico e axiológicos, horizontes verbo-ideológicos sociais e, ainda, diferentes «verdades».
Todas essas expressões remetem ao fundamento axiológico dos discursos e nascem do seu pressuposto geral de que os signos refletem e refratam o mundo, tema que merece ser explorado em mais detalhes. Pode-se dizer que há, nas balizas fundamentais de Bakhtin, uma espécie de doutrina da refração semiótica.
No processo de enunciação, realizam-se, segundo ele, duas operações simultâneas nos signos: eles refletem e refratam o mundo. Quer dizer: com os signos se pode apontar para uma realidade que lhes é externa (para a materialidade do mundo), mas isso se faz sempre de modo refratado. E refratar significa, aqui, que com os signos nós não somente descrevemos o mundo, mas construímos —na dinâmica da história e por decorrência do caráter sempre múltiplo e heterogêneo das experiências concretas dos grupos humanos— diversas interpretações (refrações) desse mundo. Nessa mesma direção, Medviédev, parceiro intelectual de Bakhtin na década de 1920, dirá que «no horizonte ideológico de qualquer época e de qualquer grupo social, não existe uma única verdade, mas várias verdades mutuamente contraditórias, não apenas um caminho ideológico, mas vários divergentes» (Medviédev, 2012: 63).
Essas várias verdades equivalem aos diferentes modos pelos quais o mundo entra no horizonte apreciativo dos grupos humanos. Como resultado da heterogeneidade de sua práxis, os grupos humanos vão atribuindo valorações diferentes (e até contraditórias) aos entes e eventos, às ações e relações nela ocorrentes. É assim que a práxis dos grupos humanos vai gerando diferentes modos de dar sentido ao mundo (de refratá-lo), que vão se materializando e se entrecruzando no mesmo material semiótico.
A refração é, desse modo, uma condição necessária do signo na concepção de Bakhtin. Em outros termos, para ele, não é possível significar sem refratar. Isso porque as significações não estão dadas no signo em si, nem estão garantidas por um sistema semântico abstrato, único e atemporal, nem pela referência a um mundo dado uniforme e transparentemente, mas são construídas na dinâmica da história e estão marcadas pela diversidade de experiências dos grupos humanos, com suas inúmeras contradições e confrontos de valorações e interesses sociais.
Em outras palavras, a refração é o modo como se inscrevem nos signos a diversidade e as contradições das experiências históricas dos grupos humanos. Sendo essas experiências múltiplas e heterogêneas, os signos não podem ser unívocos (monossêmicos); só podem ser plurívocos (multissêmicos). A plurivocidade (o caráter multissêmico) é a condição de funcionamento dos signos nas sociedades humanas. E isso não porque eles sejam intrinsecamente ambíguos, mas fundamentalmente porque eles significam remetendo a múltiplos quadros semântico-axiológicos (e não com base numa semântica única e universal).
A dinâmica da história, em sua diversidade e complexidade, faz cada grupo humano, em cada época, recobrir o mundo com diferentes axiologias, porque são diferentes e múltiplas as experiências que nela se dão. E essas axiologias participam, como elementos constitutivos, dos processos de significação, daí resultando as inúmeras semânticas, as várias verdades, os inúmeros discursos, as inúmeras línguas ou vozes sociais com que se atribui sentido ao mundo.
Essa plurivalência social dos signos é o que, segundo ainda Medviédev, os torna vivos e móveis. É ela que dá dinamicidade ao universo das significações, na medida em que as muitas verdades sociais se encontram e se confrontam no mesmo material semiótico e no mesmo signo. O material semiótico pode ser o mesmo, mas sua significação no ato social concreto de enunciação, dependendo da voz social em que está ancorado, será diferente. Isso faz da semiose humana uma realidade aberta e infinita.
Em «O Problema do Conteúdo, do Material e da Forma na Arte Verbal», Bakhtin, embora ainda não falando em termos de signos e semiose, já fazia referência a essa dinamicidade do universo das significações, quando apresentava qualquer ato da criação ideológica como vivendo essencialmente nas fronteiras.
Para ele, um domínio cultural (uma esfera da criação ideológica) não deve nunca ser pensado como tendo uma espécie de todo espacial (um território interno), mas deve ser visto como vivendo sempre na intersecção de múltiplas fronteiras. E isso porque cada ponto de vista criativo (que implica sempre uma tomada de posição axiológica) se torna necessário e indispensável somente em correlação com outros pontos de vista criativos (com outras posições axiológicas).
Essa dinamicidade intrínseca ao universo da criação ideológica (ao universo das significações) será recoberta, em outros textos, pela metáfora do diálogo e, em «O Discurso no Romance», receberá o nome de heteroglossia dialogizada.
Um segundo esclarecimento necessário diz respeito ao adjetivo ideológico nos textos de Bakhtin. Ele o usa em dois sentidos. Primeiro, como equivalente de axiológico. Assim, linguagens socioideológicas e linguagens socioaxiológicas são sinônimas, da mesma forma que horizontes verbo-ideológicos sociais e horizontes socioaxiológicos sociais.
Considerando a baixa ocorrência de ideológico nos textos de Bakhtin e considerando a extrema polissemia da palavra ideologia (o crítico britânico Terry Eagleton, em seu estudo sobre o tema, identificou 15 sentidos diferentes da palavra —cf. Eagleton, 1997), é bastante recomendável preferir sempre axiológico quando em referência às balizas do pensamento de Bakhtin.
O adjetivo aparece também, em seus textos e nos de seus parceiros intelectuais (Volóchinov e Medviédev), na expressão criação ideológica, que designa o universo das criações culturais (arte, filosofia, ciência, direito, religião etc.), também referido, em textos de teoria social, por criações do espírito ou esferas da produção imaterial ou ainda, em textos de fundo marxista, por superestrutura.
Em suma, o adjetivo ideológico, nos textos de Bakhtin e de seus parceiros intelectuais, nunca ocorre em sentido restrito e negativo. Será, portanto, inadequado interpretar suas ocorrências como relativo a «mascaramento do real» ou «falsa consciência», comum em algumas vertentes do marxismo.
Um terceiro e último esclarecimento necessário diz respeito ao termo diálogo. Há, muitas vezes, na recepção de Bakhtin, uma identificação acrítica de seu pensamento com diálogo. A palavra diálogo, contudo, tem várias significações sociais, o que pode afetar, de forma redutora, a apreensão de seu sentido no universo conceitual de Bakhtin. Ele mesmo criticou, em vários momentos, a ideia de um dialogismo estreito, reduzido às réplicas do diálogo face a face.
Desse modo, é preciso ter claro que o termo diálogo é usado por Bakhtin em sentido metafórico, como equivalente de relações dialógicas, de heteroglossia dialogizada. Em outros termos, as relações dialógicas, a dinâmica social dos signos e das significações, os encontros e embates entre as vozes sociais se realizam como se fossem réplicas de um diálogo face a face.
A palavra diálogo designa, comumente, uma determinada forma composicional em narrativas escritas, representando a conversa dos personagens. Pode designar também a sequência de fala dos personagens no texto dramático, assim como o desenrolar da conversação na interação face a face.
Bakhtin não é teórico do diálogo nesses sentidos. Não lhe interessa o estudo da forma-diálogo como tal, seja na composição escrita ou no texto dramático, seja na interação face a face. Assim, não constitui objeto de suas preocupações observar a maneira como se dá a troca de turnos entre participantes de uma conversa, como faz hoje, por exemplo, a chamada Análise da Conversação. Nem desenvolver um estudo de práticas conversacionais de um grupo humano qualquer, como se faz, por exemplo, desde a década de 1960, na chamada Etnografia da Fala ou da Comunicação —por mais interessantes que possam ser essas análises.
Portanto, o evento do diálogo face a face (aquilo que Bakhtin chama, em vários momentos, de diálogo em sentido estrito do termo) estará em seu foco de atenção não como forma composicional e sim como «um documento sociológico sumamente interessante» (conforme se pode ler em Problemas da Poética de Dostoievski —apêndice I— Bakhtin, 2008: 316), isto é, como um espaço em que mais diretamente se pode observar a dinâmica do processo de interação das vozes sociais, a heteroglossia dialogizada.
Em outras palavras, pode-se dizer que, no caso específico da interação face a face, Bakhtin não se ocupa com o diálogo em si, mas com o que ocorre nele, isto é, com os encontros e embates verbo-axiológicos, com as contraposições entre as vozes sociais que nele emergem. Interessam-lhe, de fato, as forças que se mantêm constantes em todos os planos da interação social, desde os eventos mais banais e fugazes do cotidiano até as obras mais elaboradas do vasto espectro da criação ideológica. O que lhe interessa é aquilo a que Volóchinov se refere como a «discussão ideológica em grande escala» (Marxismo e filosofia da linguagem, 219) ou o que Bakhtin chama de «o simpósio universal» (Bakhtin, 2003: 348).
Assim, o evento do diálogo face a face só interessa como um dos muitos eventos em que se manifestam as relações dialógicas —que «são bem mais amplas, diversificadas e complexas» (Bakhtin, 2016: 102) do que a relação existente entre as réplicas de uma conversa face a face. O objeto efetivo do dialogismo é constituído, portanto, pelas relações dialógicas nesse sentido lato («bem mais amplas, diversificadas e complexas»).
Bakhtin, portanto, olha para o diálogo face a face do mesmo modo que olha para uma obra literária, um tratado filosófico, um texto religioso, isto é, como eventos da grande interação sociocultural de qualquer grupo humano; como espaços de vida da consciência socioaxiológica; como eventos atravessados pelas mesmas grandes forças dialógicas (as forças da heteroglossia dialogizada).
Em seu manuscrito inacabado «O Texto na Linguística, na Filologia e em outras Ciências Humanas», escrito provavelmente em 1959/60, Bakhtin caracteriza as relações dialógicas como relações de sentido que se estabelecem entre enunciados. Assim, quaisquer enunciados, se postos lado a lado no plano do sentido, «entram inevitavelmente em relações dialógicas entre si» (Bakhtin, 2016: 88). Mesmo enunciados separados um do outro no tempo e no espaço e que nada sabem um do outro, se confrontados no plano do sentido, revelarão relações dialógicas.
Essas relações —diz Bakhtin no mesmo manuscrito— não podem ser reduzidas a relações de ordem lógica, linguística (no sentido estrito do termo), psicológica, mecânica ou natural. São relações de sentido de um tipo especial (justamente porque expressam relações semântico-axiológicas) que se estabelecem entre enunciados ou mesmo no interior de enunciados (quando marcados, por exemplo, pela chamada bivocalidade).
Essa mesma temática foi apresentada por Bakhtin no cap. 5 do seu livro Problemas da Poética de Dostoievski. Aqui, ele primeiramente afirma que não há relações dialógicas na língua enquanto objeto da linguística, isto é, não há relações dialógicas entre elementos de um sistema linguístico (por exemplo, entre palavras em um dicionário, entre morfemas, entre palavras de uma sentença etc.). Também não há tais relações dialógicas entre elementos de um texto ou entre textos quando abordados por um viés estritamente linguístico; nem entre unidades sintáticas ou entre proposições quando igualmente abordadas por um viés estritamente linguístico.
Para haver relações dialógicas, é preciso que qualquer material verbal (ou de qualquer outra materialidade semiótica) tenha entrado na esfera do discurso, tenha sido transformado num enunciado, tenha fixado a posição de um sujeito social. Só assim é possível responder (em sentido amplo e não apenas empírico do termo), isto é, fazer réplicas ao dito, confrontar posições, dar acolhida fervorosa à palavra do outro, confirmá-la ou rejeitá-la, buscar-lhe um sentido profundo, ampliá-la. Em suma, estabelecer com a palavra de outrem relações de sentido de determinada espécie, isto é, relações que geram significação responsivamente a partir do encontro e contraposição de posições avaliativas expressas nas diferentes vozes sociais.
As relações dialógicas são, portanto, relações entre índices sociais de valor —que, como vimos, constituem, no conceitual de Bakhtin, parte inerente de todo enunciado, entendido este não como unidade da língua, mas como unidade da interação social; não como um complexo de relações entre palavras, mas como um complexo de relações entre interactantes socialmente organizadas, entre sujeitos de discurso.
Bakhtin vai dedicar todo o capítulo 5 de Problemas da Poética de Dostoiévski à análise de um tipo especial de relações dialógicas manifestas nos diferentes processos daquilo que ele chama de bivocalidade. Volóchinov, por sua vez, vai fazer o mesmo, na Parte III de seu livro Marxismo e Filosofia da Linguagem, com as diferentes formas do discurso citado, tema a que também se dedicará Bakhtin em «O Discurso no Romance».
Para arrematar esse terceiro esclarecimento, vale lembrar ainda que a palavra diálogo, no uso corrente, tem também uma significação social marcadamente positiva, que remete a «solução de conflitos», a «entendimento», a «geração de consenso».
Ora, essa significação também não ocorre como tal no pensamento de Bakhtin. Ele não é, portanto, teórico do consenso ou apologista do entendimento. Ao contrário, tenta dar conta da dinâmica das relações dialógicas num contexto social dado e observa que essas relações não apontam apenas na direção das consonâncias, mas também das multissonâncias e dissonâncias. Delas pode resultar tanto a convergência, o acordo, a adesão, o mútuo complemento, a fusão, o consenso, quanto a divergência, o desacordo, o embate, o questionamento, a recusa.
E, para enfatizar esse entendimento multidirecional do funcionamento das relações dialógicas – e não apenas na direção do consenso, do entendimento, do acordo – vale lembrar aqui a expressão «uma tensa luta dialógica» que Bakhtin usa, em suas notas de caderno de 1970/71 (Bakhtin, 2017: 38), para caracterizar a dinâmica das relações dialógicas.
Volóchinov, por seu turno, ao tratar da pluralidade de acentos avaliativos das expressões verbais, dá também destaque a essa ideia da «tensa luta dialógica». Diz ele em seu livro de filosofia da linguagem: «Na verdade, qualquer enunciado real, em um grau maior ou menor e de um modo ou de outro, concorda com algo ou nega algo. Os contextos não se encontram lado a lado, como se não percebessem um ao outro, mas estão em estado de interação e em embate tenso e ininterrupto» (Volóchinov, 2017: 197).
Fica claro, então, que as relações dialógicas são entendidas também, e principalmente, como espaços de tensão entre enunciados. Estes, portanto, não apenas coexistem, mas se tensionam nas relações dialógicas. Mesmo a responsividade caracterizada pela adesão incondicional ao dizer de outrem se faz no ponto de tensão deste dizer com outros dizeres (outras vozes sociais): aceitar incondicionalmente um enunciado (e sua respectiva voz social) é também implicitamente (ou mesmo explicitamente) recusar outros enunciados (outras vozes sociais) que podem se opor dialogicamente a ela.
É nesse sentido que Bakhtin vai dizer, em «O Discurso no Romance», que qualquer enunciado é uma unidade contraditória e tensa de duas tendências opostas da vida verbal, as forças centrípetas e as forças centrífugas.
Assim, o diálogo, no sentido amplo do termo («o simpósio universal»), deve ser entendido como um vasto espaço de luta entre as vozes sociais (uma espécie de guerra dos discursos), no qual atuam forças centrípetas (aquelas que buscam impor uma certa centralização verbo-axiológica por sobre a pluridiscursividade concreta) e forças centrífugas (aquelas que corroem continuamente as tendências centralizadoras, por meio de vários processos dialógicos tais como a paródia e o riso de qualquer natureza, a ironia, a polêmica explícita ou velada, a hibridização ou a reavaliação, a sobreposição de vozes, etc.).
Bakhtin, ao apresentar sua concepção axiologicamente estratificada da linguagem (a heteroglossia) e sua dialogização (a heteroglossia dialogizada), aponta também, portanto, para a existência de jogos de poder entre as vozes que circulam socialmente, manifestados nas tendências centrípetas e correlacionados a condições sócio-históricas específicas.
Ao qualificar as forças centrípetas como monologizantes, é preciso observar que elas não deixam de ser dialógicas: elas também constituem um gesto responsivo no oceano da heteroglossia dialogizada. Em outras palavras, a atitude discursiva monológica é intrinsecamente dialógica (no sentido amplo do termo) – como, aliás, na concepção de Bakhtin, todas as manifestações verbais.
4. Bakhtin: o filósofo e o sujeito discursivo
É no interior do complexo caldo da heteroglossia e de sua dialogização que nasce e se constitui o sujeito. A realidade linguística se apresenta para ele primordialmente como um mundo de vozes sociais em múltiplas relações dialógicas —relações de aceitação e recusa, de convergência e divergência, de harmonia e de conflitos, de intersecções e hibridizações.
É nessa atmosfera heterogênea que o sujeito, mergulhado nas múltiplas relações e dimensões da interação socioaxeológica, vai se constituindo discursivamente, assimilando vozes sociais e, ao mesmo tempo, suas inter-relações dialógicas. É nesse sentido que Bakhtin várias vezes diz, figurativamente, que não tomamos nossas palavras do dicionário, mas dos lábios dos outros.
Como a realidade verbo-axiológica é heterogênea, nenhum sujeito absorve uma só voz social, mas sempre muitas vozes. Assim, ele não é entendido como um ente verbalmente uno, mas como uma agitada arena de vozes sociais e seus inúmeros encontros e entrechoques. O mundo interior é, então, uma espécie de microcosmo heteroglóssico, constituído a partir da internalização dinâmica e ininterrupta da heteroglossia social: «Vivo em um mundo de palavras do outro. E toda minha vida é uma orientação nesse mundo; é reação às palavras do outro (uma reação infinitamente diversificada)» (Bakhtin, 2017: 38).
Há, portanto, na teoria da subjetividade de Bakhtin, a concepção do primado constitutivo da alteridade: «O ser humano é uma equação do eu e do outro» (Bakhtin, 2003: 99). Mas não há aí um determinismo absoluto porque o sujeito assimila não só vozes sociais, mas principalmente sua dialogização, o que implica movimentos contínuos de relações dialógicas de consonâncias e dissonâncias, resultando em reelaborações singularizantes: «Minha palavra e minha voz, nascidas da palavra do outro ou dialogicamente estimuladas por ela, mais cedo ou mais tarde começam a libertar-se do poder dessa palavra alheia. Esse processo se complexifica pelo fato de que as diferentes vozes dos outros entram em luta pela consciência do indivíduo (assim como lutam na realidade social circundante)» (Bakhtin, 2015: 143).
Bakhtin, em seu manuscrito «O Autor e a Personagem na Atividade Estética» (provavelmente escrito entre 1920 e 1923), estabelece uma distinção crucial para sua teoria estética, mas estendida para qualquer evento de enunciação, conforme se lê, por exemplo, nesse seu apontamento dos anos 1970: «Todo enunciado, até uma saudação padronizada, tem uma determinada forma de autor (e de destinatário)» (Bakhtin, 2017: 42).
Trata-se da diferença entre o autor-pessoa e o autor-criador. O primeiro diz respeito ao sujeito empírico (o locutor) e o segundo à função-autor, ao sujeito discursivo (o enunciador). O locutor não se confunde, portanto, com o enunciador. Bakhtin assume que o sujeito empírico (o locutor), não sendo monovocal, se desloca, ao enunciar, entre diferentes funções-autor (o locutor se torna enunciador). Em outras palavras, se o sujeito empírico, como ser de linguagem, é constituído de várias vozes sociais, sua atividade enunciadora será sempre deslocada, ou seja, cada ato enunciador se realiza a partir de uma voz social, expressa uma determinada posição axiológica. E o faz sempre responsivamente, ou seja, todo discurso é dialogicamente orientado, todo enunciado é sempre um posicionamento axiológico frente ao já-dito: «A palavra quer ser ouvida, entendida, respondida e mais uma vez responder à resposta, e assim ad infinitum» (Bakhtin, 2016: 106).
5. Bakhtin: o filósofo no horizonte da glotopolítica
Bakhtin morreu muito antes que os debates trouxessem para a ribalta perspectivas que passaram a focar a linguagem não como um sistema autônomo, mas como uma realidade situada nas relações sociais. Ele antecipou essas perspectivas e formulou uma direção filosófica orientadora de seu estudo. Seu pensamento ficou, porém, por longos anos, desconhecido.
Na década de 1980, Louis Guespin e Jean-Baptiste Marcellesi, dois sociolinguistas franceses, estenderam as perspectivas de abordagem da linguagem como realidade social para o universo das relações entre política e linguagem e adotaram, para designar essa perspectiva, o termo glotopolítica.
Apesar da distância temporal entre esses dois empreendimentos teóricos, parece claro que a filosofia da linguagem de Bakhtin traz contribuições para os que se dedicam, hoje, à perspectiva glotopolítica. Ele nos lembraria que o que se diz e o que se diz sobre a linguagem está assentado em posições socioaxiológicas. Assim, ações políticas sobre a linguagem, quaisquer que elas sejam, se assentam também em diferentes matrizes valorativas. Elucidá-las, percebê-las na heteroglossia dialogizada (nos embates sociodiscursivos) e confrontá-las a partir de outras matrizes valorativas serão gestos glotopolíticos inspirados no dialogismo bakhtiniano e com evidente poder heurístico.
Fontes citadas
-Bakhtin, Mikhail M. (2010). Para uma Filosofia do Ato Responsável. (1919/1921). Trad. Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. São Carlos: Pedro & João editores.
-_______ (2003). O Autor e a Personagem na Atividade Estética. (1920/1923). Trad. Paulo Bezerra. In Estética da Criação Verbal. 4.ed. São Paulo: Martins Fontes, 3-192.
-_______ (1990). The Problem of Content, Material, and Form in Verbal Art. (1924). Trans. Kenneth Brostrom. In Art and Answerability: Early Philosophical Essays by M.M.Bakhtin. Austin: University of Texas Press, 257-325.
-_______ (2008). Problemas da Poética de Dostoiévski. (1963). Trad. Paulo Bezerra. 4.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária.
-_______ (2015). O Discurso no Romance. (1934-1935). Trad. Paulo Bezerra. In Teoria do Romance I: a estilística. São Paulo: Editora 34, 19-241.
-_______. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. (1965). Trad. Yara Frateschi Vieira. São Paulo: HUCITEC; Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1987.
-_______(2003). Reformulação do livro sobre Dostoiévski. (1961). Trad. Paulo Bezerra. In Estética da Criação Verbal. 4.ed. São Paulo: Martins Fontes, 337-357.
-_______ (2016). O Texto na Linguística, na Filologia e em outras Ciências Humanas. (1959-1961). Trad. Paulo Bezerra. In Os gêneros do discurso. São Paulo: Editora 34, 71-107.
-_______ (2003). Os Estudos Literários Hoje (Resposta a uma pergunta da revista Novi Mir). (1970). Trad. Paulo Bezerra. In Estética da Criação Verbal. 4.ed. São Paulo: Martins Fontes, 359-366.
-_______ (2017). Fragmentos dos Anos 1970-1971. Trad. Paulo Bezerra. In Notas sobre Literatura, Cultura e Ciências Humanas. São Paulo: Editora 34, 21-56.
-_______ (1993). Toward a Philosophy of the Act. Trans. Vadim Liapunov. Austin: University of Texas Press.
-_______(1997). Hacia una Filosofía del Acto Ético. Trad. Tatiana Bubnova. Barcelona: Anthropos; San Juan: Universidad de Puerto Rico.
-Bocharov, Sergei (oct. 1994). Converstaions with Bakhtin. PMLA – Publications of the Modern Language Association of America, vol. 109, nro. 5, 1009-1024.
-Clark, Katerina; Holquist, Michael. Mikhail Bakhtin. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 1998.
-Eagleton, Terry (1997). Ideologia: uma introdução. Trad. Luís Carlos Borges e Silvana Vieira. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista; Editora Boitempo.
-Guespin, Louis; Marcellesi, Jean-Baptiste (2021). Defesa da Glotopolítica. In Savedra, Mônica; Pereira, Telma; Lagares, Xoán (orgs.) Glotopolítica e Práticas de Linguagem. Niterói: Editora da Universidade Federal Fluminense, 11-49.
-Hirschkop, Ken (1999). Mikhail Bakhtin: An Aesthetic for Democracy. New York: Oxford University Press.
-Medviédev, Pável N (2012). O Método Formal nos Estudos Literários: introdução crítica a uma poética sociológica. (1928). Trad. Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Contexto.
-Volóchinov, Valentin (2017). Marxismo e Filosofia da Linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. (1929). Trad. Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34.
-_________ (1987). Freudism: A Critical Sketch. (1926). Trans. I. R. Titunik. Bloomington: Indiana University Press.