Resenhado por Fernanda Castelano Rodrigues
Marcos Bagno, um dos mais atuantes linguistas brasileiros da contemporaneidade, parece ter pressentido seu exílio quando aceitou o desafio de organizar uma série de escritos que recolhe parte importante de seus trabalhos já publicados, além de outros inéditos, para comporem a obra Objeto língua. Nela, o autor nos apresenta as principais concepções teóricas que norteiam sua produção acadêmica e os mais significativos resultados de suas pesquisas, especialmente sobre a língua portuguesa falada no Brasil.
Lançado em 2019 pela Parábola –editora da cidade de São Paulo que vem se esmerando na publicação de obras ora clássicas ora inovadoras no campo dos estudos sobre a linguagem e as línguas–, o livro contém quinze trabalhos cujos temas giram em torno de reflexões sobre tradução, gramática, ensino, norma culta, norma padrão, contraste entre línguas românicas (em particular entre o português brasileiro e o europeu), entre outras.
Mesmo que muitas e muitos ainda façam questão de se lembrar apenas daquele que é seu livro de maior alcance, Preconceito linguístico: o que é, como se faz –que contabilizava mais de cinquenta e cinco edições e mais de 300 mil exemplares vendidos ao completar vinte anos, tendo ganhado da Parábola em 2015 uma edição “radicalmente, ampliada e atualizada do livro publicado inicialmente em 1999” (Bagno, 2015, p. 9)–, as obras desse linguista brasileiro nos brindam com uma extensa e profunda análise do presente e do passado da língua portuguesa, numa produção tão inquietante quanto arguta, da qual se podem destacar: sua Gramática pedagógica do português brasileiro (2012), obra que descreve a língua falada no Brasil em mais de mil páginas; suas reflexões sobre a questão da norma linguística, abordada tanto em livros autorais como A norma oculta (2003) quanto em antologias como Norma linguística (2011), Linguística da norma (2012) e Políticas da norma e conflitos linguísticos (2011), este último co-organizado com Xoán Lagares Diez; e seu Dicionário crítico de sociolinguística, lançado em 2017, que é, sem dúvida, uma de suas maiores contribuições para os estudos desse campo no Brasil, considerando inclusive a tímida produção teórica nacional nessa disciplina.
Para poder entender o que está em jogo em Objeto língua, é preciso compreender a concepção de “língua” e a definição da “linguística” assumidas por Marcos Bagno. Obviamente, essas noções permeiam todos os textos da obra, mas estão explicitadas, de modo preciso, em seu penúltimo artigo: “é possível dizer que as línguas não existem como objetos dados a priori, como objetos empíricos facilmente apreensíveis pelos sentidos físicos: elas são abstrações, criações dos linguistas, dos filólogos, dos gramáticos e de todos os demais indivíduos e instituições que se ocupam delas […]. E como toda e qualquer criação humana se faz em sociedade, e como toda organização social é uma organização política, a linguística, como criadora de objetos de conhecimento, é social e política” (p. 221).
Os gêneros discursivos do livro variam do artigo acadêmico –que mobiliza e discute conceitos teóricos caros a diferentes áreas da Linguística (em especial à Sociolinguística) e da Glotopolítica para realizar análises de fatos linguísticos–, à crônica–que muitas vezes parte das memórias da infância e da juventude do autor–, o que nos leva a aprender sobre os fatos da linguagem e das línguas, em especial da língua portuguesa falada no Brasil, e também conhecer um pouco da pessoa do autor.
Do primeiro tipo, destacam-se “Norma culta? Norma oculta? Norma curta!” (p.45), “Hibridismo de normas e tradução” (p. 77), “Que é uma língua? Imaginário, ciência e hipóstase” (p. 189) e “Quando surge uma língua?” (p. 219). Neles, Bagno define e explica conceitos como “língua”, “hipóstase”, “variedade”, “norma”, “padrão”, “prestígio”, “estigma”, sempre “confrontando a tradição gramatical e o vernáculo geral brasileiro” (p. 176 e ss.). Mesmo nesses textos mais teóricos, o autor demonstra sua preocupação pedagógica –“para não ficar simplesmente na teorização abstrata” (p. 176)–, que faz também com que o livro esteja repleto de exemplos textualizados e também organizados em quadros, figuras, gráficos e imagens.
Já nos textos do segundo tipo, entre as leves e sempre ácidas crônicas, merecem atenção “A norma culta que se lasque!” (p. 13) e “A língua é fascista?” (p. 25), em que Bagno nos oferece afirmações tão contundentes quanto polêmicas: “A norma culta que se lasque, que se dane, que se esboroe! A norma culta que vá tomar banho na soda!” (p. 16), “Esse é o ‘fascismo’ da língua: a imposição de um modo de dizer do qual ninguém pode escapar” (p. 29). Encerrando o livro, a delicada “As últimas cinco palavras” (p. 245) revela o fascínio do autor pelo universo (e o mistério) das línguas.
Em se tratando de um livro de Marcos Bagno, claro que não poderia faltar lenha (do melhor tipo) para queimar em torno da fogueira produzida por um tema exaustivamente pesquisado e debatido pelo autor há pelo menos duas décadas: as diferenças entre o português brasileiro (PB) e o português europeu (PE): “Por que mais de quinhentos anos depois da chegada dos portugueses ao Brasil não podemos falar de línguas diferentes, como podemos falar de línguas diferentes quinhentos anos depois da ruína do Império Romano?” pergunta-se (ou pergunta-nos?) o autor, em um de seus textos mais precisos sobre o assunto: “Quando surge uma nova língua?” (p. 219).
Quem vive no Brasil ou se interessa por essa discussão, seja linguista ou leigo, sabe que Marcos Bagno defende que a língua do Brasil e a de Portugal se constituem em sistemas linguísticos distintos, portanto, duas línguas. O pesquisador tem uma série considerável de trabalhos em que, a partir da análise contrastiva de vários aspectos de diferentes níveis da língua portuguesa falada em cada um desses dois espaços, nos mostra suas razões para essa defesa. Três dos textos de Objeto língua, que comparam as diferenças e descrevem as características do PB, talvez sejam capazes de condensar sua contribuição para a reflexão sobre algumas questões já muito discutidas e revisitadas.
Em “Tradução: espelho da mudança? Mafalda responde”, o autor investiga a questão da explicitação “(quase) obrigatória” (p. 99) do sujeito verbal no PB, analisando as distintas traduções de textos em quadrinhos da personagem argentina Mafalda nos quais se simulam interações orais. Nesse meticuloso estudo constrastivo dos usos dos pronomes sujeitos em PB, PE e no espanhol rio-platense nessas traduções, os dados de suas conclusões são taxativos ao mostrarem o quanto as realidades linguísticas do PB e do PE vão se distanciando: “Temos, assim, nas mesmas 100 tiras: espanhol rio-platense (0 pronome sujeito), português europeu (15), português brasileiro (160)” (p. 123).
Em “A feia tirania e a manha vergonhosa – a próclise e a ‘língua de Camões’”, Bagno se dedica ao já épico tema da colocação pronominal, a “sintaxe dos clíticos” (p. 125) e, mais uma vez, se (nos) pergunta: “Por que insistir em regrar de outro modo o que já está devidamente regrado na gramática intuitiva dos falantes?”. É com adjetivações como “feia tirania”, “manha vergonhosa”, “cego engano”, “crime ecológico” e “irracionalidade” que o autor destila suas críticas à tradição gramatiqueira brasileira, que insiste em prescrever usos diferentes daqueles que as e os falantes brasileiros utilizam naturalmente. Após mostrar, com múltiplos exemplos, que a próclise é a posição pronominal mais comum nas diferentes variedades do português faladas no Brasil, o linguista traz para esse trabalho sua preocupação com o ensino da língua portuguesa nas escolas brasileiras, analisando como é abordada a questão da colocação pronominal em doze livros didáticos de Ensino Fundamental II, aprovados no Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) do Ministério da Educação em 2008, e conclui: “Todas, invariavelmente, se esforçam por prescrever as regras tradicionais com suas incompreensíveis divisões e subdivisões. A única exceção fica por conta da coleção LSX, que delega a discussão do tema para o/a professor/a e o/a aluno/a” (p. 135). E como se não bastasse, Bagno ainda tem fôlego para verificar a sintaxe dos clíticos em Os Lusíadas –obra de Luís de Camões publicada em 1527 em Portugal, a partir da qual se criou o ideologema “língua de Camões” para a língua portuguesa–: “no Canto I da epopeia (com seus 848 versos), encontraremos 130 próclises contra 38 ênclises (e uma única e solitária mesóclise, uma colocação aliás raríssima no poema todo)” (p. 141). A extensão e o rigor das análises levam a uma conclusão absoluta: “A riqueza das possibilidades de uso que a língua nos oferece deve ser ensinada nas escolas. Não se trata de proibir o uso da ênclise nem da mesóclise […]. O que não podemos permitir é uma apresentação capenga e danosa das regras que já estão definitivamente implantadas na gramática do português brasileiro e que constituem a língua que é nossa, aquela com a qual construímos nossa identidade pessoal e coletiva” (p. 146).
O terceiro texto exemplar de Objeto língua no que diz respeito ao estudo das características da língua falada no Brasil é A africanidade do português brasileiro (p. 147), no qual o autor trata da necessidade urgente de “assumir o caráter marcadamente africano do português brasileiro” e “reconhecer nossa imensa e impagável dívida para com ‘o falar atravessado dos africanos’ que é, nada mais nada menos, a verdadeira matriz da nossa língua materna” (p. 163). Esse artigo, como outros do mesmo volume, não deixa de fazer referência à realidade social do negro e denunciar o racismo estrutural que caracteriza a sociedade brasileira.
Também a questão do nome das línguas é abordada em diferentes textos: em “Que é uma língua? Imaginário, ciência e hipóstase”, o linguista afirma que a “eleição de uma língua ou de uma variedade linguística específica” por parte de “Estados nacionais unificados e centralizadores” é o fator que “impõe a necessidade de nomear essa língua ou variedade” (p. 202). Francês, português, alemão e italiano ocupam o centro das explicações sobre essa construção imaginária em torno das línguas nacionais, mas são muitos os outros casos mencionados –como os das línguas árabe, hindi, urdu, dinamarquês, sueco, norueguês, sérvio, croata, macedônio, romeno, moldavo, malaio, indonésio– para demonstrar algumas das ocorrências em que “o mesmo nome [é] aplicado a modos de falar bem diferentes” ou “nomes diferentes [são] aplicados a modos de falar muito semelhantes” (p. 213).
Em “Quando surge uma língua”, o autor afirma que “Os nomes das línguas (tanto quanto a própria noção de língua) são construtos culturais e ideológicos” e se nega a tratar a questão do nome da língua oficial do Brasil ao dizer não querer “entrar no debate estéril sobre o nome da língua, se já deveríamos ou poderíamos chamar a língua majoritária do Brasil de ‘brasileiro’ porque, repito, é um debate estéril” (p. 223). Temos, no entanto, uma designação interessante, que surge em sua explicação da decisão teórica de descrever o PB como língua autônoma (e não como uma variedade do PE), “a fim de postular a existência de um grupo de línguas, que chamo de portugalego, onde incluo o galego, como idioma ancestral das demais línguas do grupo –tronco original do qual se ramificou o português–, e todas as línguas surgidas, no curso do último meio milênio, da expansão marítima de Portugal no final do século 15 e de seu subsequente imperialismo colonial, que perdurou até 1975” (p. 219).
Pode parecer incrível –e realmente é–, mas Objeto língua é capaz de aproximar todas e todos a cada uma dessas reflexões linguísticas tão complexas quanto polêmicas. Isto é possível porque Marcos Bagno tem um projeto político próprio, e conseguiu as ferramentas necessárias para executá-lo: visibilizar as desigualdades profundas do Brasil por meio da discussão sobre a representação social das línguas que aqui circulam, em particular a língua portuguesa, única oficial em território nacional, o que equivale a dizer que o autor é responsável por difundir conhecimento linguístico e consciência de classe ao mesmo tempo e que sua crítica sobre o modo como a norma é concebida no Brasil é um claro exemplo, no campo na análise linguística, do que é sua própria luta contra todas as opressões que sofre o povo brasileiro.
São inúmeros os momentos do livro em que a crítica social e política explode, com coragem, como tem sido sempre na vida e na obra de Bagno. Esses dois fragmentos, relevantes e atuais, que surgem nas análises das noções de “norma culta” e de “adequação”, nos permitem entrever esse projeto:
Ou seja: dizer “deixa eu entrar” não tem problema, é “norma culta” porque gente “culta” emprega essa construção. Mas dizer “as pessoa só qué trabaiá em paz” não deve ser aceito, porque “sofre rejeição”. Sim, cara-pálida, mas rejeição de quem?
Muita gente diria: sofre rejeição “da sociedade”. Mas desde quando a sociedade é um todo homogêneo, um bloco compacto? Essas formas sofrem rejeição de uma parcela da sociedade, isso sim, precisamente da parcela, ínfima, que ocupa as posições mais altas da pirâmide socioeconômica, que tem acesso à boa escolarização e aos direitos da cidadania. Essa parcela não chegaria a 20% da população total. Faz aí as contas (em A norma culta que se lasque!: p. 15).
A mulher negra pode saber falar tudo muito certo, mas não pode falar. Ela tem que permanecer muda e invisível. Porque, se ousar falar, ela é assassinada a tiros, como foi assassinada a tiros Marielle Franco, mulher negra bissexual nascida e criada na favela da Maré, vereadora do PSOL (Partido Socialismo e Liberdade), aos 38 anos, em 14 de março de 2018, por encomenda dos grupos mafiosos que controlam os mecanismos infectos e infecciosos da cidade e do estado do Rio de Janeiro (em Com as ferramentas do patrão? Até quando?, p. 21).
Para encerrar, é preciso dizer, mesmo que a leitora e o leitor já tenham se dado conta: este texto pretende ser, mais que uma resenha de Objeto língua, um agradecimento a Marcos Bagno, por manter viva sua indignação diante do avanço das forças reacionárias e destruidoras do Brasil, por renovar a cada dia o seu compromisso ético, político e ideológico com a defesa dos ideais democráticos e republicanos de liberdade, justiça e igualdade. Em Brasília, na Itália, na Austrália, na China, na Lua. Energare urc crea soltri smare.
Referências
Bagno, Marcos (2003). A norma culta. São Paulo: Parábola.
_____ (org.) (2011). Norma linguística. São Paulo: Edições Loyola.
_____ (org.) (2012). Linguística da norma. São Paulo: Edições Loyola.
_____ (2015). Preconceito linguístico. São Paulo: Parábola, 56ª edição.
_____ (2017). Dicionário crítico de sociolinguística. São Paulo: Parábola.
_____ & Lagares Diez, Xoán (2011). Políticas da norma e conflitos linguísticos. São Paulo: Parábola.